O sonho da burguesia é comer rádio comunitária
A Casa Grande, dos móveis devorados pelos cupins e das paredes aonde o mofo faz moradia, modernizou-se: recebe TV por satélite, especula na Bolsa, produz para o agronegócio, marca presença no SP Fashion Week,...
Nada de novo. Há cinco séculos é assim, essa capacidade da burguesia renovar o verniz dos móveis, rebocar os buracos nas paredes, e anunciar que é tudo novo. Na Casa Grande inteligente do século XXI mora o mesmo senhor feudal, o coronel das caatingas, o usineiro, o empresário de sucesso - o DNA do poder continua vivo. Manifestação do poder do capital, ele sobrevive às custas do saque e exploração das riquezas públicas, das riquezas naturais, do trabalho do operário.
É assim no Brasil desde aquela manhã na Bahia quando aqueles caras, um bando de meliantes, fedorentos, desceram das caravelas e, em nome da Igreja Católica e do rei dalém mar, decretaram que todos e tudo ali – índios, fauna e flora – tinham dono. O Brasil foi patenteado em 1500.
Quem usasse o Brasil sem a autorização oficial seria, a partir de então, tratado como pirata, bandido, ladrão. Comer, cagar, dormir, viver, falar, comunicar-se, ser brasileiro, agora só com permissão, só por concessão pública. Ainda hoje é assim. O poder se estabeleceu e criou um cartório para gerir os negócios (sobre as riquezas locais) conforme seus interesses. É assim que funciona: o saqueador tem o poder, e usa este poder para legitimar seu saque. Assim se constroem as grandes riquezas no Brasil; assim nasceram os latifúndios e a elite econômica – o Conde Drácula é um empresário de sucesso.
O botim é sacralizado: nele não se bole: para ter acesso à riqueza é preciso ser elite, ser burguesia, morar em Casa Grande, ou simplesmente ter o poder. Não é para qualquer um. O povo pobre que não ouse se aproximar dessa riqueza – vai ter polícia federal armada de metralhadora e escopeta nas suas costas. Nêgo será preso, algemado, submetido a processo federal. O povo das senzalas que não se meta a besta de querer comer bem, vestir-se bem, ter terra, casa, saúde, e até, imagine?!, comunicar-se. O antigo édito real – “Comunicação não é para o bico do povo” - continua em vigor.
A comunicação é deles. A terra é deles. O dinheiro é nosso mas é para eles. As elites nacionais (quem tem o dinheiro/poder) construíram o Brasil assim, para servi-las, garantindo o domínio sobre as riquezas locais. Tudo que é riqueza. Incluindo aquela obtida por quem não produz nada: em 2003, primeiro ano de Governo popular de Lula, os banqueiros lucraram cerca de 200% em relação ao ano anterior e pagaram somente a metade em impostos. Na Folha de São Paulo (13/07/04), Clóvis Rossi indaga: “Alguém aí acredita que tem alguma chance de vida um país em que o jogo financeiro tem remuneração quatro vezes superior à atividade produtiva?”.
É preciso deixar bem claro, essa característica vampiresca das elites econômicas não é exclusiva do setor financeiro. Tudo que é riqueza pátria atrai vampiros. Enquanto o Brasil tiver um fiapo de vida terá este bicho grudado em suas costas. Resultado: o Brasil do século XXI é campeão mundial da má distribuição de renda e o 69º no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). No final de 2004 o Unicef anunciou que 75% das crianças do Nordeste passam fome. Enquanto isso, o presidente Lula continua sua peregrinação de vendedor do Brasil (tal qual FHC), convidando as multinacionais a investirem no país. Que venham os vampiros!
Pela revista de fofocas revela-se ao pobre a existência de uma Casa Grande, as caras e bocas dos granfinos. E o pobre aprende a admirar a Casa Grande e o seu perfume de Casa Grande. O pobre sonha morar num lugar assim, uma ilha cercada de ócio por todos os lados, com todas as gostosas da TV, incluindo as siliconadas; ser famoso e chique. O povo aprendeu isso - de querer ser um elite - na escola, mas, principalmente nas TVs e rádios e jornais das elites. O apelo pedagógico foi tão forte, tão sistemático, que o pobre não viu (não lhe deixaram ver) que as elites lhe roubam, e que ele mora numa senzala, numa favela, na periferia, num barraco, ou embaixo de um viaduto, porque a riqueza do país vai toda para essa gente. O que lhe sobra são as migalhas do banquete. Banquete montado com o que lhe pertence.
O latifúndio do ar
É com a comunicação que as elites ficam mais ricas e explicam o mundo ao povo; e justificam sua riqueza diante do povo. A comunicação estabelece a cultura. É com a comunicação que o bandido, tornado rico e famoso, é invejado pelo povo. Homem de sucesso. Rico e poderoso. Como ele ficou rico e poderoso? Graças ao trabalho ou à fama. E ninguém questiona mais. A senzala, inexistente nos meios de comunicação, não sabe que há uma luta de classes.
Os meios de comunicação informam que existe a fome, a miséria, a favela, o tráfico, mas é tudo por falta de uma abstrata política governamental (precisa mudar mas sem mudar a distribuição da riqueza). A questão é estrutural, mas se atribuem nossos problemas a uma entidade irreal, a “autoridade”. Também dizem que a fome é, principalmente, coisa de pobre, e circunstancial - dessa gente que não teve oportunidade de estudar, ou de virar pagodeiro ou jogador de futebol. Na versão modernizada, eis a panacéia para o social: aprender informática e dançar capoeira faz o sujeito “sair” do crime, escapar da violência e discriminação. Ensina a mídia elitizada ao povo da senzala irreal que basta força de vontade para escapar da miséria. O mercado, divindade entronizada pelas elites, oferece as oportunidades. Basta estudar. E tome curso de formação para pobre. No jornal da tarde a TV comercial festeja a vitória daquela menina que mora na favela mas estuda balé; e o sucesso daqueles meninos do sertão brabo, aonde não se pode plantar porque a água tem dono (é do coronel, dono da terra e da rádio local), mas eles tocam Mozart, Beethoven, Bach... O clássico chegou à caatinga – então está tudo resolvido: a fome não existe mais. E o povo da senzala comemora poder entrar na Casa Grande – aparecer no jornal da elite – e tocar o que a elite diz que é coisa de gente fina, música clássica.
As elites, através da comunicação, manipulam a cultura e impõem seus padrões sobre o oprimido, que os absorvem:
“O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivem a dualidade enquanto ser é parecer, e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo”. (Paulo Freire em “Pedagogia do oprimido”)
O poder nas comunicações, como na terra, ainda é oligárquico, feudal, embora moderno, industrial. Ele se distribui entre as famílias – donas de terra, agronegócios, bancos, jornais, revistas, ou emissoras de rádio e televisão –, e o clero. A comunicação faz e refaz a história. Eles sabem: “Quem manipula o poder, manipula também o esquecimento”.