“É fundamental lutar pela democratização do espectro
eletromagnético.”
No
Equador existe o que no Brasil ainda não conseguimos: uma nova lei de meios de
comunicação. Porém esse fato não automaticamente garante uma crescente
liberdade de expressão e uma diversificação da radiodifusão, nos informa Clara
Robayo, colaboradora da ONG Radialistas Apasionadas y Apasionados. Falamos com
Carla sobre a perseguição de comunicadores e comunicadoras independentes no seu
país, da luta das rádios comunitárias até uma autossustentação e o futuro uso
do espectro eletromagnético.
Amarc
Brasil: No Brasil, o Equador é citado, às vezes, como um país exemplar em
relação a uma crescente liberdade de expressão. Porém, também ouvimos denúncias
de organizações independentes de comunicação que foram fechadas pelo governo
por supostas atividades ilícitas. Como explicam-se a circulação de relatos tão
opostos?
Clara
Robayo: Na realidade é muito preocupante o que está acontecendo no Equador.
Existem diversos exemplos que demonstram que a liberdade de expressão está
ameaçada. Por exemplo, foi fechada a ONG Fundação Pacha Mama, devido a sua
suposta participação num protesto. Durante esse evento um diplomata estrangeiro
foi ferido com uma lança. Em vez de seguir um devido processo contra essa
pessoa, que teria sido o mais lógico, o governo decidiu fechar a fundação. Justificaram
essa ação juridicamente com o argumento, que como ONG não temos o direito de
fazer política ou seja ter relações de proselitismo político. E se considera
que a presença da Pacha Mama nesse ato violava esse acordo.
AB:
Existe também uma intimidação individualizada de jornalistas que fazem
pesquisas e escrevem sobre temas controvertidos no Equador?
CR: Sim
também observamos ações contra jornalistas. Há um tempo, uma jovem jornalista
estadunidense relatou um massacre de dois grupos indígenas Taromenane do
Amazonas. Em seguida, o presidente do Equador, Rafael Correa saiu na televisão,
falando que ela, sendo estrangeira, não tinha nenhum direito a opinar e que não
era certo o que ela falava. Correa a desprestigiou como pessoa e muitos levarem
isso à sério. Começaram a insultá-la nas rede sociais, um verdadeiro
linchamento midiático. Isso é uma coisa terrível, promover o ódio no povo
contra uma pessoa, isso não deveria acontecer. Cada pessoa tem o direito de
expressar a sua opinião e de participar em debates.
No
âmbito da música ainda tem outro caso, do cantor de música de protestos, Jaime
Guevara. Ele fez um gesto desapropriado na rua quando passo a caravana
presidencial. Aí Correa saiu do carro e ordenou que prendessem Guevara,
acusando-o de estar bêbado. No relatório policial foram repetidas essas mesmas
acusações, de que ele parecia bêbado e drogado. Uns dias depois, todas as
pessoas que conheciam esse cantor, manifestaram que esse cantor era abstêmio e
por uma doença cerebral nunca tinha tomado álcool. Era contrário a todos os
medicamentos que ele tomava. A desculpa que Correa lançou foi que ele não tem a
culpa de que outro parece bêbado e drogado.
Chegamos
num ponto em que qualquer pessoa que diz algo crítico contra o regime é visto
como a oposição. E não é assim. Deveria existir um ponto no meio a partir do
qual se pode reconhecer as coisas boas, porque claro que existem coisas boas.
Porém, sempre deve existir a possibilidade para debater.
AB: Além
desses casos, Equador recentemente aprovou uma nova lei de comunicação. Como
foi esse processo, de cima pra baixo ou houve uma participação da sociedade civil?
CR: Na
verdade, isso foi um processo muito longo. Diversas organizações sociais no
Equador estavam trabalhando já há muitos anos já para ver como democratizar e
regular a comunicação de uma nova maneira. E diversas dessas organizações se
juntaram para fazer uma reclamação junto ao presidente Correa sobre uma nova
lei de comunicação, um regulamento que definiria normas para todo esse
exercício. Formou-se então um agrupamento chamado Autoconvocados onde estavam
presentes Aler, Corape, Siespal, Radialistas e outras organizações como El
Churro, por exemplo. Eles estavam unidos para fazer incidência na elaboração da
lei.
AB: E
qual foram as reivindicações especificas dessa coalizão de organizações
sociais?
CR: Este
tema da tripartição igualitária das frequências radiofônicas entre rádios
publicas, comerciais e comunitárias foi a bandeira desse agrupamento,
influenciado um pouco pelo processo na Bolivia onde o uso complementar de
radiofrequências foi reformado. Mas ao inicio nossa reivindicação foi muito mal
visto mesmo por setores do governo. Na primeira reunião, os mesmas funcionários
que depois começaram a apoiar a nossa agenda se esquivavam de nós e diziam que
isso era uma loucura, que o espectro não era uma bolo que se repartia dessa
lógica.
Depois
disso Correa deu um passo muito importante e muito significativo que consistiu
em nomear uma comissão de auditoria de frequências na qual foram pesquisadas as
irregularidade de um leilão de frequências que ocorrera um par de anos antes.
Antes da nova lei no Equador realmente vendiam-se frequências. O processo para
ganhar uma frequência era, você pagava, para dar um numero, 6 milhões de
dólares. E tinha diversos outros mecanismos que a comissão achou. Por exemplo,
herdar frequências. Um pai simplesmente deixou de herança uma frequência aos
seus filhos. Ainda outro esquema se chamava conversão-reversão. Alguém que já
não queria uma frequência apresentou a um amigo que logo ficou com a
frequência. Depois de entregar esses resultados a Correa ele falou que isso é era
uma bomba-relógio e que teria que resolver esse problema imediatamente.
AB: E o
que aconteceu?
Iniciou-se um processo de reforma que terminou em nada. A ideia inicial foi
criar uma verdadeira tripartição das frequências e que todas essas frequências
determinadas que não fossem legalmente concedidas voltassem às mãos do Estado
para sua redistribuição. Mas isso nunca aconteceu. E logo, com a nova lei de
comunicação queriam incluir de novo essa ideia da redistribuição e se criou uma
norma transitória que definiu que todas as outorgas que não eram emitidas pelo
órgão competente teriam que ser revertidas ao Estado e logo redistribuídas. O
problema é que todas as irregularidades documentadas pela comissão demostraram
a participação da agência reguladora CONATEL, ou seja, eles mesmos aprovaram as
irregularidades. Por exemplo, existe um caso muito emblemático, o caso de Jorge
Yunga, que presidia a CONATEL. Ele saiu para tomar um café, deixando o cargo
temporariamente com um colaborador e quando voltou o outro já tinha
confeccionado duas novas frequências. Ou seja, os mecanismos irregulares foram
criados pelos reguladores. E da longa lista de frequências distribuídas dessa
forma nenhuma foi revertida ao Estado. Até la aí chegamos com nossa luta por
uma tripartição do espectro e uma reversão das frequências irregulares.
AB: Como
foram afetadas as rádios comunitárias por essa distribuição irregular de
frequências?
CR: Bom,
antes da nova lei, por muito tempo não existia mídia comunitária legalmente,
apenas uma televisão do movimento indígena em Cotopaxi. Porém, ainda antes da
reforma legal, o governo em algum momento reconheceu a figura legal dos meios
de comunicação comunitária e entregou 14 emissoras aos povos indígenas, como um
reconhecimento de uma dívida histórica que havia. Atualmente o governo está
criando mais meios comunitários. Mas não se trata-se de um processo no qual eu
como organização social, como comunidade posso ir e solicitar uma frequência.
Senão o governo está levando todo esse processo e são eles só que assinam as
frequências. Já existem agora 54 dessas emissoras e vão ser criadas muitas
mais. Mas correspondem a vontade do governo e não as reivindicações das
comunidades.
AB: Mas
imagino que articula-se uma crítica a essa atuação?
CR: O
que se faz agora é informar as comunidades sobre o seu direito de poder
organizar uma rádio e impulsionar-lhes para que exijam a sua frequência. Mas
até agora somente estão reunindo essas solicitações em muitas pastas para
decidir sobre esses casos conjuntamente. Vamos vendo o que vai acontecer. Eu
temo que ninguém vá conseguir uma frequência, mas mesmo assim temos que
pressionar. Aos meios de comunicação comunitários que operam foi tudo
facilitado no começo, todos os equipamentos para que funcionassem. Isso inclui
até duas pessoas com salários de 700 dólares (ca. 1400 Reais) cada um para que
trabalhem na emissora. Então existe uma tutela do Estado para que essas rádios
funcionem bem. Uma tutela para que eles não precisem se sustentar-se sozinhas,
o Estado lhes está dando tudo. E isso é muito perigoso. Pode parecer muito
positivo mas no momento em que o Estado já não tem recursos para dar-lhes a
emissora não vai ter como seguir funcionando.
AB: Mas
o que determina a lei, então? Fala-se da sustentabilidade, de um número de
frequências, etc.?
CR: A
lei diz que rádios comunitárias podem vender serviços, produtos e podem vender
espaços publicitários para sustentar-se sob essas lógicas. Mas isso não
acontece, as rádios que recebem uma outorga também recebem esse grande apoio
material e mão de obra. É esquisito, assim nem fazem uso das possibilidades da
lei que coloca quase nenhum limite no funcionamento.
AB: Mas
devem existir limites de potência e outras normas?
CR: Bom,
depende onde se solicita uma outorga, se existem frequências disponíveis ou
não. Primeiro se faz um estudo técnico antes de permitir uma rádio comunitária.
Existem muitos requisitos, devem ter por exemplo também um certo montante de
dinheiro para demonstrar que podem manter a rádio no ar por um tempo.
AB: E
como vocês com Radialistas atuam nesse contexto? Quais são as suas
contribuições especificas?
CR:
Radialista vinculou-se bastante com o processo de elaborar essa nova lei. Estivemos
lutando muito pela aprovação da tripartição igualitária das frequências. Também
organizamos falas e seminários, vamos as emissoras que agora existem para falar
sobre a sustentabilidade para que as rádios vejam que é possível existir sem
depender do Estado. E também nosso trabalho está enfocado na capacitação das
rádios para que possam produzir melhor para que tenham os recursos e insumos
para fazer uma boa programação. E além disso trabalhamos também em outros
países, observamos os processos e a aplicação de outras leis para preparar e
poder ajudar no caso que uma emissora solicite ajuda. Por exemplo colaboramos
bastante com rádios no México, na Colômbia, na Bolívia e em outros países para
que as rádios comunitárias de lá consolidem-se mais.
AB: Na América
Latina atualmente fala-se muito também sobre uso compartilhado do espectro
eletromagnético como um bem comum. Como está sendo construído esse debate no
Equador?
Como já falei, partimos do princípio de que o espectro deveria ser repartido de
forma igualitária: 33% para rádios públicas, 33% para rádios comerciais e 33%
para rádios comunitárias. Também existe um debate sobre a digitalização.
Defendemos, no caso da televisão que seja implementado o padrão nipo-brasileiro
que permite colocar quatro canais por frequência, ou seja vai ter espaço para
quatro vezes mais canais. E também no caso da TV digital aplica se tripartição
igualitária da qual falei em relação ao rádio. É um espaço que ainda é pouco
usado. Mesmo as empresas comerciais da TV que têm outorgada uma frequência
ainda não fazem uso da possibilidade de transmitir quatro programações
diferentes. Um tempo atrás havia um debate sobre uma lei secundaria que
estabeleceria que a mesma pessoa que é a concessionária da frequência também é
a única responsável por esses quatro novo canais. Mas bem, essa é uma lei
secundaria e eu acho que esse princípio não vai ser estabelecido. Mas temos que
ficar atentos para que realmente seja estabelecida uma repartição equitativa
dos novo canais digitais. Porque essa luta é fundamental para democratizar o
espetro eletromagnético.
AB: Mas,
de qualquer forma, a radiodifusão digital é condicionada já hoje com a seleção
de padrões, com a alocação de faixas do espectro. As mudanças de outras mídias,
de outros serviços de comunicação que fazem uso do espectro eletromagnético
influenciam bastante. Difícil tratar o rádio como um caso aparte…
CR:
Claro, essas mudanças levam diretamente a pergunta sobre o que é um meio de
comunicação comunitária. Nós achamos que qualquer comunidade, organização ou
grupo – eu sublinho isso porque no Equador falando das comunidades muitas vezes
somente acham que se fala das comunidades indígenas – tem o direito de fazer
mídia. Ou seja, qualquer pessoa da sociedade civil já individualmente tem o
direito de aceder ao espectro. Faz parte do direito de cada um de nós exercer o
nosso direito universal à comunicação, a expressar o que sentimos e a gozar da
liberdade de expressão. Um meio comunitário se faz entre todos e todas e o sustentamos
também dessa forma, juntos. Então tem que lutar para que todos e todas tenhamos
acesso a esses meios para que ninguém seja privilegiado e para que possamos
ouvir as diferentes vozes
A
entrevista foi realizada por João Paulo Malerba e Nils Brock