Como a prática, recorrente no Brasil, de políticos eleitos se
tornarem proprietários de empresas concessionárias de rádio e televisão ou de
radiodifusores serem eleitos para cargos do poder público e passarem a legislar
em causa própria é prejudicial à democracia
Por Carlos Gustavo Yoda*
“Coronel” é patente militar em quase todos os exércitos do mundo.
O mais alto posto antes de “general” dentro das Forças Armadas do Brasil,
figura responsável pelo regimento de uma ou mais tropas ou companhias. No
Nordeste brasileiro, “coronel” também é sinônimo de grandes proprietários de
terra, “os coroné”, quem manda, aquele que dita as regras. Daí o termo
“coronelismo”, cunhado, em 1948, no clássico da ciência política moderna Coronelismo, Enxada e Voto, do
jurista Victor Nunes Leal, para dar nome ao sistema político que sustentou a
República Velha (1889-1930). Entre as interpretações de documentos, legislações
e dados estatísticos, o livro explica como o mandonismo local se misturava aos
altos escalões das estruturas de poder.
Mais de
60 anos se passaram desde a publicação de Victor Nunes Leal. E o coronelismo de
outrora ganhou novos contornos, entre eles, o chamado coronelismo eletrônico.
Em período eleitoral, nada mais importante do que revisitar essa história e
analisar como o controle de emissoras de rádio e televisão por políticos segue
influenciando os rumos da política brasileira.
Para provocar essa reflexão, a partir desta semana, oIntervozes,
com o apoio da Fundação Friedrich Ebert, publica uma série de reportagens sobre
o fenômeno da concentração dos meios sob o controle de grupos políticos. Daqui
até o final da campanha eleitoral vamos mostrar por que e como esta prática é
prejudicial à democracia, o que diz a legislação e a quem cabe fiscalizar e
punir os abusos, quem são os principais partidos e grupos econômicos que violam
a Constituição e se aproveitam desta ilegalidade. Por fim, buscaremos conhecer
como funcionam as regras em outros países que desenvolveram mecanismos eficazes
de combate ao coronelismo eletrônico.
A publicação das reportagens é uma contribuição do Intervozes à campanha Fora Coronéis da Mídia, lançada
em julho deste ano pela Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social
(ENECOS), com o objetivo de mobilizar os mais diversos movimentos sociais e
sensibilizar a sociedade e as esferas de poder sobre o tema.
Origens do problema
De acordo
com Victor Nunes Leal, durante a Velha República, a milícia imperial estava a
serviço dos grandes proprietários de terras e escravos. Esta articulação entre
quem comandava as instituições públicas e os grandes fazendeiros passou a
influenciar os processos eleitorais. Sucessivos governos locais, estaduais e
federais se elegeram com o chamado “voto de cabresto”, a partir da relação
estabelecida em locais pobres. O coronelismo se sustentava, assim, em um
sistema político de troca de favores recíprocos, onde o voto é moeda de troca
por benefícios pessoais, em detrimento do interesse público e do bem comum,
também interpretados como clientelismo e fisiologismo.
Mesmo em
meio a uma lavoura economicamente decadente, os coronéis continuaram a manter
uma moeda de valor inestimável: a influência absoluta sobre a vontade e os
destinos de empregados, meeiros e todos aqueles envolvidos em torno do grande
latifúndio. O valor dessa moeda aumentou com a democratização formal do País,
sobretudo no período republicano quando se universaliza o direito ao voto: o
“coronel” passa a ser então o elo de ligação entre o poder estadual e os
eleitores. Aos governos cabia, como contrapartida, o reconhecimento da
autoridade local e a alimentação desse poder, através da cessão de alguns
recursos: empréstimos, empregos e, sobretudo, os favores das forças policiais.
A liderança do coronel exige o sistema representativo, e essa é a preocupação
central de Victor Nunes ao longo de seu livro. Ele destaca ainda que o sistema
coronelista depende sobretudo de um ambiente baseado na estrutura arcaica de
concentração de propriedade do latifúndio.
Com
indicadores censitários da década de 1940, Victor Nunes aponta que os grandes
latifúndios ocupavam mais de 75% em área das terras disponíveis no País e que
70% da população ativa pertenciam à categoria dos não-proprietários, cifra que
chegava a 90%, somados os pequenos proprietários, cuja situação era de total
precariedade, na maior parte dos lugares.
Apesar do
coronelismo ser um episódio histórico, consequências e processos culturais do
sistema coronelista ainda se fazem sentir na arcaica distribuição fundiária, de
renda e de poder no Brasil.
Coronelismo eletrônico
“Mais
sofisticado, sutil e ainda mais perverso”, na opinião do cientista político e
professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Francisco Fonseca é o “moderno”
fenômeno do coronelismo eletrônico, ou seja, o uso de canais de comunicação de
radiodifusão para atender a interesses políticos – prática que perdura nos
tempos digitais. Suas origens estão no autoritarismo coronelista de décadas
passadas e a prática política traz inúmeras semelhanças com seus modelos de
concentração de propriedade. Só que, em vez do poder sobre as terras, o
controle agora também alcança as ondas do rádio e da TV.
No início da década de 1980, um repórter da Rádio Rural, de Concórdia (SC),
abria espaço para o depoimento do ex-senador Atílio Fontana: “Senador, o
microfone é todo seu”. O senador, ciente de suas propriedades, disse a quem
quisesse ouvir: “Não só o microfone, meu rapaz, mas a rádio toda”. Este
episódio foi narrado em matéria do Jornal
do Brasil que, naquela época,
já denunciava o uso eleitoreiro de 104 estações de rádio e televisão,
espalhadas por 16 estados, de propriedade de deputados, governadores, senadores
ou ministros.
O cenário da época foi analisado pela professora de comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Suzy dos Santos, no artigo “o Coronelismo
Eletrônico como herança do coronelismo nas comunicações brasileiras”. Nos
anos 80, o processo de abertura política do regime militar dava seus primeiros
passos. Depois de 15 anos de bipartidarismo, em novembro de 1979, a Reforma
Partidária foi aprovada. Os novos partidos começavam a ser articulados.
“Também naquele ano, foram liberadas as eleições diretas para
governos estaduais. A concentração partidária, através dos governadores,
senadores e prefeitos ‘biônicos’ e da maioria do Congresso com representantes
da Arena, deu o tom da distribuição das outorgas de radiodifusão para as elites
políticas. Na reportagem do Jornal
do Brasil, 81,73% das estações de rádio e televisão mencionadas eram
controladas por afiliados do PDS”, partido de remanescentes da Arena, explica
Suzy.
Desde a denúncia no Jornal
do Brasil, a expressão “coronelismo eletrônico” tem sido usada com
frequência na mídia e em artigos acadêmicos para se referir ao cenário
brasileiro no qual políticos eleitos se tornam proprietários de empresas
concessionárias de rádio e televisão – ou, então, tão comum quanto,
radiodifusores são eleitos para cargos do poder público e passam, no caso dos
eleitos para o Congresso Nacional, a participar das comissões legislativas que
outorgam os serviços e regulam os meios de comunicação no país, legislando em
causa própria. Não foram poucos os casos na história. Todos passaram impunes.
Neste
cenário, alerta Francisco Fonseca, da FGV, as instituições políticas acabam
cooptadas pelo poder econômico dos grupos de comunicação. “O coronelismo
midiático provoca o fim da diversidade. É antidemocrático. Estimula as
estruturas de oligopólios e as pautas [jornalísticas] em nome de uma elite. É
uma censura de mercado, econômica”, afirma.
O impacto desta prática nos processos eleitorais e na configuração
das representações das instituições também é significativo. O rádio e,
principalmente, a televisão continuam sendo os meios de comunicação de massa de
maior alcance na população. A última PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de
Domicílios) mostrou que 97,2% das residências possuem pelo menos um aparelho de
televisão e 75,7%, um de rádio.
A esses meios de comunicação cabe o papel de dar expressão às
demandas e à diversidade da sociedade em todos os seus aspectos, mas também de
fiscalizar os poderes públicos e a iniciativa privada. É também por meio de uma
mídia livre que se estabelece a ligação e o controle entre representantes e
representados, como princípio fundamental para o ambiente democrático. Por
isso, a Constituição Federal garante o direito de acesso à informação aos
cidadãos e, em conjunto, a liberdade de imprensa.
Num quadro em que um meio de comunicação de massa, que deveria
cumprir uma função pública, é controlado por um político, que pode influenciar
sua linha editorial, a autonomia e independência deste veículo para exercer o
controle sobre o poder público estão totalmente comprometidas. Ao mesmo tempo,
o proprietário do veículo passa a ter o poder de filtrar e restringir
informações e conteúdos a serem divulgados, na medida de seus interesses e de
seus correligionários, numa prática de autopromoção.
Fica caracterizado, assim, um claro desequilíbrio nos princípios
de igualdade dos processos eleitorais, numa situação que pode configurar até
mesmo a violação de eleições livres, com candidatos e partidos em condições
totalmente desiguais de disputa.
Compreendendo o risco para a democracia brasileira do controle de
serviços públicos, como a radiodifusão, por políticos, a Constituição Federal,
em seu artigo 54, proíbe que deputados e senadores sejam proprietários ou
diretores de empresas concessionárias de serviço público ou exerçam cargo ou
emprego remunerado nesses espaços privados. A medida vem sendo respeitada para
diversos serviços, mas segue ignorada no caso do rádio e da televisão (como
veremos nas demais reportagens desta série).
No
próximo artigo, você vai saber o que pensam o Ministério das Comunicações, o
Ministério Público e a Justiça Eleitoral sobre esta prática. E saber como a
sociedade civil e partidos políticos contrários a este uso das concessões de rádio
e TV estão lutando contra o problema.
* Carlos Gustavo Yoda é
jornalista e integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.