Carlos Castilho
O secular dilema entre liberdade de expressão e direitos
individuais começa a ser discutido num novo contexto, particularmente no caso
da relação entre empresas de comunicação e a infância e adolescência. É o que
foi possível vislumbrar nas entrelinhas dos debates ocorridos durante o
Seminário Internacional Infância e Comunicação - Direitos, Democracia e
Desenvolvimento, que reuniu especialistas brasileiros e estrangeiros em
Brasília entre os dias 6-8/3.
As esperanças despertadas pelo evento estão, paradoxalmente, na
ausência de resoluções normativas. Para quem acompanha as polêmicas na relação
imprensa/infância, a evolução positiva ocorre na medida em que os
protagonistas, notadamente as organizações não governamentais ligadas ao
problema, começam a se dar conta que ocorreram mudanças irreversíveis no
relacionamento entre crianças e adolescentes e a mídia, no seu sentido amplo.
Soluções do tipo regulamentação, autorregulamentação ou
desregulamentação total começam a ser vistas como alternativas para situações
especÍficas em vez de normas gerais para aplicação indiscriminada, independente
das características particulares de cada contexto social, político, econômico e
cultural.
A maioria dos participantes do evento organizado pela ANDI,
Ministério da Justiça e Secretaria Nacional dos Direitos Humanos seguia a linha
tradicional do debate centrado nos prós e contra da regulamentação da mídia
quando a psicóloga Maria Dolores Souza, diretora do Conselho Nacional de
Televisão do Chile, apresentou uma pesquisa sobre hábitos de crianças e
adolescentes menores de 16 anos que coloca em questão o enfoque oficial sobre a
regulamentação, autorregulamentação ou desregulamentação dos programas de
televisão aberta e por cabo.
A pesquisa mostra que os aparelhos de TV e os computadores já não
estão mais na sala de estar, mas nos quartos das crianças e adolescentes. E que
pouco menos da metade do público com menos de 16 anos assiste a qualquer
programa televisivo, em qualquer horário, pela internet. Mais ainda, que os
sistemas de bloqueio de canais pornográficos são facilmente anulados por
códigos que circulam pela Web e que são passados de criança para criança pelas
redes sociais e chats.
A pesquisa é bem mais ampla e detalhada, mas destaco apenas esses
dados para sinalizar que o crescimento da internet alterou o rumo das
discussões sobre as políticas públicas na questão mídia/criança/adolescentes. A
nova realidade digital mudou o eixo das preocupações de uma abordagem
generalista para um enfoque específico e contextualizado.
Até agora havia a necessidade de políticas globais, tipo uma para
todos, porque era impossível customizar as relações entre produtores e
consumidores de conteúdos informativos pela falta de ferramentas apropriadas. O
programa da Xuxa podia ser recomendado para uma determinada faixa de audiência
porque era um mesmo programa num mesmo horário para milhares de crianças. Na
Web, uma criança pode assistir a qualquer programa (novo ou velho) da Xuxa ou
similares, em qualquer horário, independente da escolha de outras crianças.
Começamos a sair de uma era de grandes decisões, com códigos e
normas para aplicação em grandes conglomerados humanos, para o tempo das
microdecisões orientadas para grupos sociais definidos e em contextos
específicos. A nova realidade evita abordagens generalistas como as que sempre
entravaram o debate sobre liberdade de expressão e direitos individuais. Quando
prevalece a regulamentação, surgem injustiças para casos particulares. Quando a
liberdade de escolha é total e absoluta, cria-se o espaço para abusos
inomináveis.
As microdecisões eram impossíveis até a popularização da internet
porque não havia canais de comunicação que permitissem contatos personalizados
entre um grande número de pessoas. Com as redes sociais e outras ferramentas de
comunicação personalizada, as mães de um condomínio, por exemplo, já podem
trocar ideias e fixar uma atitude comum diante dos filhos. Os meios de
comunicação também podem produzir programas para nichos de públicos infantis
usando a WebTV, coisa inviável há 15 anos.
A grande dificuldade da nova conjuntura é que ela vai exigir muita
reflexão e participação das pessoas. Até agora todo mundo cobrava um código,
leis e normas das autoridades. Depois íamos dormir tranquilos achando que o
problema estava resolvido e, caso surgissem problemas, estes eram culpa de quem
não aplicou direito as regras estabelecidas. A partir de agora teremos que
estudar cada situação para aplicar as normas mais adequadas.
Isso vai exigir também a participação direta dos principais
envolvidos, como no caso, as crianças e adolescentes para que eventuais
deliberações tenham como base o consenso e não a imposição. É uma mudança
complexa e nada fácil porque implica a mudança de comportamentos, crenças e
valores entranhados em nossa cultura.
Fomos educados para seguir comportamentos dicotômicos tipo bom ou
mau, bonito ou feito, justo ou injusto, legal ou ilegal. Não estamos
acostumados a analisar e discutir situações intermediárias porque estas,
geralmente, exigem o exame de situações particulares e específicas. Acontece
que a avalancha informativa deflagrada pela internet tornou possível conhecer
muitos ângulos de um mesmo problema, o que complica qualquer decisão que não
leve em conta os detalhes.
Qualquer tipo de regulamentação interfere na liberdade de
expressão e vice-versa. Continuar discutindo a questão nos seus aspectos gerais
ou normativos vai sempre levar a um beco sem saída, salvo quando o contexto
específico em que está localizada a questão for discutido pelos interessados.
Quando este aspecto é tomado em consideração, o problema muda de natureza
porque deixa de ser uma responsabilidade de um ente longínquo como tribunais,
governo ou polícia para se transformar num assunto da comunidade de pessoas
envolvidas.
Foi esta perspectiva que começou a ser vislumbrada nas
intervenções e conversas no Seminário Internacional Infância e Comunicação. Não
é a resposta que muitos esperam, mas tem o mérito de explorar novas
alternativas evitando soluções do tipo “mais do mesmo”, com pequenas variantes.