Por Bruno Marinoni*
Na pequena comunidade de Santo Antônio do Matupi, no
município de Manicoré, distante 332 km de Manaus (AM), uma comunidade resolveu
instalar uma rádio de baixa potência (20 watts) para, segundo acórdão publicado
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), “prestar serviços comunitários”. Não
esperou, porém, pela devida autorização da Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel). Resultado: o Ministério Público entrou com uma ação criminal contra o
diretor da rádio, que passou, assim, a correr o risco de cumprir pena de dois a
quatro anos de detenção e de ter que pagar uma multa de R$ 10 mil.
A Defensoria Pública da União foi acionada e conseguiu,
conforme decisão publicada pelo STF no mês de agosto de 2013, garantir a anistia do
diretor da rádio amazonense, apelando para um princípio que pode ser,
ironicamente, um trunfo para comunicadores: a suposta “insignificância”, já
que, por tomar o ato como uma “conduta minimamente ofensiva do agente, a
ausência de risco social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do
comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica”, a Justiça pode
considerar descabida a instauração de um processo criminal.
Ora, não é exatamente o que queremos, pois defendemos que
as descriminalização das rádios comunitárias e livres decorra da afirmação do
direito à comunicação. Não obstante, se trata de uma importante “redução de
danos”. Confrontados por um cenário em que se observa uma criminalização
generalizada dos movimentos populares e rádios comunitárias, muito temos que
comemorar a cada tentativa vencida de incriminar um comunicador. Além
disso, a decisão sobre o caso específico da rádio amazonense (que, pela sua
potência, não deve ser captada além do raio de 3 km) foi tomada por consenso no
STF, apontando no sentido da consolidação de uma possível jurisprudência
favorável à luta do movimento nacional de rádios comunitárias.
Comparando-se com decisões anteriores, pode-se observar
mudanças no entendimento do Judiciário. Em fevereiro deste ano, foi publicada a
decisão, por maioria do STF, de cassar a ação penal contra um diretor de rádio
comunitária em Camaçari (BA), que operava com um transmissor de 32,5 watts. Em
dezembro de 2010, aconteceu o mesmo com dois diretores de uma rádio gaúcha de
25 watts de potência que operava em Inhacorá (RS), mas o quadro foi de empate,
seguido do deferimento da posição do relator Ricardo Lewandowsky a favor do
habeas corpus. Nos três casos mencionados, o “princípio da insignificância” foi
mobilizado para confrontar o absurdo artigo 183 da Lei Geral de
Telecomunicações, que define o status de crime para “o desenvolvimento
clandestino atividades de telecomunicação”. Segundo a Associação Mundial de
Rádios Comunitárias (Amarc), somente o Brasil e a Guatemala tratam com
processos criminais a emissão não autorizada de sinal radiofônico.
Por outro lado, a resistência à descriminalização no
Legislativo, sob pressão do lobby da radiodifusão, tem sido intensa. No fim do
ano passado, por exemplo, o Senado rejeitou uma proposta do deputado Assis
Carvalho (PT/PI) de conceder anistia a representantes legais de fundações e
associações sem fins lucrativos que operem serviço de radiodifusão abaixo de
100 watts. O texto já havia sido aprovado em uma primeira discussão na Câmara
dos Deputados. O Executivo, por meio da Anatel e do Ministério das
Comunicações, também opera uma intensa criminalização dos comunicadores
populares, enquanto elabora planos de “regularização” da
radiodifusão comercial clandestina. Já citamos, neste blog, em artigo anterior, o caso de Jerry Oliveira,
militante do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, que enfrenta um
processo criminal por resistir aos desmandos dos agentes da fiscalização
federal e da polícia.
Embora, no caso da rádio comunitária amazonense, a
Justiça tenha recusado a aplicação da ação criminal, a rádio segue impedida de
operar. A proibição, porém, é da competência específica da justiça
administrativa e civil, não implicando nesse caso os desdobramentos de um
processo que considera crime o descumprimento da norma. Ainda encontramos um
obstáculo à efetivação do direito à comunicação aí. Mas a decisão abre brechas
para avançarmos na luta pela garantia desse direito.
* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do
Direito à Comunicação e doutor em Sociologia pela UFPE