O Ministério Público se interessa pelo tema e vai atrás dos contratos
das igrejas neopentecostais
Jefferson Aparecido Dias, Procurador da República |
Prática corriqueira, o aluguel de tempo de televisão no Brasil
assemelha-se à distribuição de sesmarias pelos capitães hereditários do período
colonial. A União, por meio do Ministério das Comunicações, distribui
concessões de radiodifusão aos “donatários”, que recebem a missão de povoar as
emissoras com conteúdo próprio ou independente. Incapazes de realizar a tarefa,
os concessionários distribuem parte de suas frequências para outros colonos,
que se incumbem de torná-las produtivas. Há, porém, uma diferença fundamental:
a parcela da grade horária repassada por donatários de emissoras a terceiros
lhes proporciona dividendos milionários, o que não ocorria com os capitães do
passado.
A estratégia das emissoras de
arrendar uma parte ou a totalidade de sua grade horária desenvolveu-se sob a
vista grossa do Ministério das Comunicações nos últimos anos. Embora a pasta
tenha chegado em 2012 a estudar um decreto para vetar o expediente, o governo
de Dilma Rousseff recuou da medida após parlamentares da bancada evangélica
ameaçarem uma debandada para a oposição. As igrejas neopentecostais são as
principais beneficiárias da prática.
No topo da lista, a Igreja
Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, usufrui de mais de 1,5 mil
horas de televisão por mês, distribuídas entre seis emissoras. Além de espaços
consideráveis na Record, Rede TV!, Bandeirantes e Gazeta, a Universal mantém
controle quase integral sobre a programação da Rede 21 e da CNT. A igreja tem um
contrato de cinco anos para ocupar 22 horas diárias da programação de ambos os
canais e tem a prerrogativa para aprovar ou não o conteúdo das peças
publicitárias veiculadas nos intervalos. O acordo pode ser entendido como uma
subconcessão, vedada pela Lei de Concessões e o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT).
Em agosto de 2014, o então
ministro das Comunicações Paulo Bernardo afirmou não ter base legal para
impedir a prática e disse ser esse o motivo pelo qual o Ministério Público
Federal se omitia. Foi a senha para os procuradores da República Elizabeth Kobayashi
e Jefferson Aparecido Dias ingressarem com ações em dezembro do ano passado
contra a Rede 21 e a CNT. Os procuradores obtiveram os contratos da Universal
com ambos os canais, bem como os acordos da igreja com a Record, a Rede TV! e a
Bandeirantes. Em todos os casos, os valores contratuais foram rasurados, o que
obrigará o MPF a requisitar judicialmente as cifras. Os procuradores estimam
que a Bandeirantes, dona da Rede 21, receberá 480 milhões de reais em cinco
anos, e a CNT, 420 milhões.
Diante desse quadro, o Ministério
Público pediu a decretação da indisponibilidade de bens da CNT, da Rede 21 e da
Universal, o impedimento aos réus de obter novas outorgas de radiodifusão e a
suspensão das concessões. Embora a Justiça tenha negado os pedidos, a decisão em
primeira instância relativa à CNT traz boas perspectivas. Os autos afirmam que
os fatos narrados na ação estão suficientemente comprovados e os argumentos
jurídicos “são consistentes e devem ser levados a sério”.
Por se tratarem de ações
inéditas, a doutrina jurídica para o tema é raquítica. Duas teses embasam as
ações dos procuradores. A primeira trata da ilegalidade da subconcessão. Embora
a Lei de Concessões admita a transferência da operação de serviços públicos a
terceiros, ressalva-se justamente os casos ligados à radiodifusão. A segunda
tese é mais abrangente e, caso aceita pela Justiça, pode atingir as outras
quatro emissoras. Segundo os procuradores, a comercialização de tempo de tevê
constitui uma venda de espaço publicitário, independentemente da natureza do
conteúdo a ser veiculado. O CBT prevê o limite de 25% do tempo de programação a
ser destinado à publicidade.
Dada a omissão do Ministério das
Comunicações na fiscalização das irregularidades, o Fórum Interinstitucional
pelo Direito à Comunicação (Findac), encontro mensal entre os procuradores e
representantes de organizações como Intervozes e Artigo 19, continuará a atuar
para regular o setor. O Findac tem procedimentos administrativos instaurados
para tratar de outros arrendamentos, da acumulação excessiva de outorgas em
mãos de uma única pessoa física e do controle de concessões de radiodifusão por
deputados e senadores, um flagrante desrespeito à Constituição. Se não vier
pelo Congresso, talvez a reforma do setor de telecomunicações saia dos
gabinetes do Ministério Público.