Por Candice Cresqui
As rádios
comunitárias têm encontrado uma série de obstáculos para seu funcionamento.
Além do volume de exigências para a legalização, a morosidade do governo
federal na concessão de outorgas e a falta de recursos, as rádios de baixa
freqüência enfrentam uma campanha sistemática de desmoralização e descrédito,
encabeçada pelas grandes empresas de radiocomunicação. Entre os argumentos
apontados pelas rádios comerciais - principalmente agora, aproveitando-se do
momento de crise no setor aeronáutico do país - está o de que as rádios
comunitárias interferem fortemente nos sistemas de comunicação e
rádio-navegação aérea, podendo até mesmo provocar queda de aeronaves.
Sancionada
pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em 1998, a Lei
9.612 estabelece os critérios para concessão de canal às rádios comunitárias.
Para receber a outorga, essas emissoras só podem operar em um raio de até um
quilômetro, a uma altura máxima de 30 metros, longe dos aeroportos e com
equipamento de transmissão fiscalizado e homologado. Além disso, quando recebem
a autorização para começar a operar, as emissoras passam a ter um espaço no
plano de canais calculado pela Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL,
de forma que não interfiram em outra freqüência FM. “Física e tecnicamente,
essas rádios de pequeno alcance não teriam como interferir na comunicação entre
aeronaves e aeroportos”, avalia o jornalista Dioclécio Luz, autor do livro A
arte de pensar e fazer rádios comunitárias.
Os sinais
de VHF são divididos de dois a seis para canais baixos de televisão e de sete a
13 para canais altos de televisão. As transmissões de rádio em freqüência
VHF-FM operam entre os canais seis e sete. Localizam-se nesta faixa todos os
canais de rádio FM, entre eles os de comunicação aeronáutica, policial e
hospitalar. As rádios FM, comerciais e comunitárias outorgadas, operam de 88 a
108 MHz (Mega Hertz). Já a faixa de comunicação aeronáutica vai de 108 a
aproximadamente 137 MHz.
Como cada
um desses sistemas opera em faixas diferentes, a princípio, não há
possibilidade de captar em um rádio comum as conversas da central de polícia
com o carro patrulha ou a comunicação entre a torre de um aeroporto e alguma
aeronave. Esses danos só ocorrerão se houver problemas na transmissão, se o
equipamento não for regulado corretamente, ou não tiver os filtros adequados
para impedir os sinais harmônicos (duplicados) ou espúrios (aquele que opera
fora da faixa permitida).
As rádios
de baixa potência não legalizadas que usam sinal livre dentro da faixa FM até
podem ser responsáveis por interferências junto ao controle do espaço aéreo.
Entretanto, se o equipamento é comprado legalmente e possui a homologação do
órgão responsável, a possibilidade de interferência é mínima, mesmo que a rádio
de baixa potência não seja legalizada. Assim garante o engenheiro eletrônico e
pesquisador Higino Germani, ex-diretor técnico da TVE-RS. Para Germani, que tem
larga experiência em sistemas de radiodifusão (foi chefe da área técnica de
Radiodifusão no antigo Departamento Nacional de Telecomunicações e diretor
técnico da Rádio Nacional de Brasília, atual Radiobrás), “embora possam ocorrer
interferências, é um exagero dizer que uma rádio possa derrubar uma aeronave”.
O diretor
da Faculdade de Ciências Aeronáuticas da PUCRS, Elones Fernando Ribeiro,
salienta que a incidência de acidentes graves provocados pela interferência de
sinais estranhos à radiocomunicação aeronáutica é nula, tanto que os livros
técnicos utilizados pelos alunos não fazem referência a nenhum caso. “Nunca
ouvi falar em queda de aviões”, conta o profissional, que tem em seu currículo
mais de 27 anos como controlador de vôo e oito anos como piloto.
Um estudo
realizado pelo pesquisador Marcus Manhães, do Centro de Pesquisa e
Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), explica que a interferência de uma
rádio na comunicação aeronáutica se dá por uma composição de vários sinais e
não apenas um. Sinais de emissoras de rádio FM distintas, ao serem captados com
níveis suficientemente fortes, podem provocar um efeito denominado
intermodulação. Este fenômeno resulta em uma mudança de freqüências dos sinais
recebidos, tornando-os idênticos ou relativamente próximos da faixa de
freqüência utilizada na recepção dos serviços aeronáuticos. “Uma vez que as
rádios comunitárias trabalham em baixa potência, elas só poderiam interferir
com a ajuda de um sinal mais potente, ou seja, o de uma rádio comercial. Quanto
mais alto for o sinal, mais crítica pode ser a interferência. É uma equação
simples”, frisa o técnico. Cabe ressaltar, segundo Manhães, que cada aeroporto
possui um único canal de rádio-comunicação dentro da faixa permitida.
Outro
fator importante para a ocorrência de interferências, conforme o pesquisador, é
a instalação de estações de rádio próximas aos pontos de testes dos aeroportos.
No caminho para os aeroportos, são demarcados pontos que indicam a localização
das pistas de pousos. Em alguns desses pontos são instalados equipamentos
responsáveis pela medição de ocorrência, em terra, de interferência de sinais
radiofônicos na comunicação aeronáutica. Se, na superfície houver ingerências de
sinais estranhos à comunicação, o mesmo ocorrerá no ar. “No caso da cidade de
São Paulo, por exemplo, o ponto de teste está localizado na Avenida Paulista,
local onde um expressivo número de estações comerciais está instalado. Nesta
região, as interferências ocorrem com mais freqüência”, explica o pesquisador.
São três
os aparelhos utilizados pelas aeronaves para auxiliar a navegação e a
comunicação aeronáutica: o ILS (Instrument Landing System Localizer) tem
a finalidade de guiar aeronaves em procedimento de aproximação e aterrissagem;
o VOR - VHF (Omnidirectional Radio Range) auxilia a navegação aérea
fornecendo informações sobre a radial da aeronave em relação a um ponto
terrestre de localização conhecida, também denominado radiofarol; e o COM - VHF
(Communications Equipament) proporciona comunicação bidirecional de voz
entre a tripulação da aeronave e o controlador de vôo.
Segundo a
pesquisa de Manhães, podem ocorrer neles interferências de dois tipos: aquelas
provocadas pelo aparecimento de produtos de intermodulações ocasionadas pela
não linearidade dos receptores; e aquelas decorrentes da incapacidade de
rejeitar sinais de intensidade elevada. No segundo tipo de interferência, o
serviço irá considerar potencialmente interferentes os sinais que forem de
intensidade superior a -5dBm.
O dBm
(decibel miliwatt) é a medida mais comum para expressar a potência de um
equipamento de transmissão (rádio). Zero dBm é o mesmo que 1mW de potência. A
maioria dos rádios oferecem entre 15 a 18 dBm de potência de saída, sendo entre
30 a 50 mW.
Já nos
serviços ILS e VOR, os níveis de interferência variam com o valor da freqüência
da estação FM. “Admitem-se níveis maiores para os canais mais baixos da faixa
de FM. Tal variação significa que os receptores aeronáuticos estão mais
sujeitos às interferências provenientes dos canais mais altos da faixa de FM e,
conseqüentemente, são menos suscetíveis aos canais mais baixos”, explica o
pesquisador.
Em 2005,
os deputados federais Walter Pinheiro, Henrique Fontana, Valdecir de Oliveira e
Adão Pretto questionaram o Ministério da Defesa (MD) quanto aos acidentes que
teriam ocorrido em resultado de interferências em aeroportos. Das cinco
ocorrências registradas, três eram de emissoras comerciais de radiodifusão. “A
resposta do ministério revela que há comerciais, as broadcasting,
como eles dizem, interferindo em dois aeroportos de grande trânsito do país,
Guarulhos e Santos Dumont. Estas emissoras são associadas da ABERT - Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão”, afirma o jornalista Dioclécio
Luz.
Para
impedir a ocorrência de interposições de freqüências, a Agência Nacional de
Telecomunicações - ANATEL teria que interferir nas rádios comerciais. “Mas isso
é coisa que eles jamais farão. É mais fácil culpar as emissoras comunitárias
pelas interrupções provocadas na comunicação aeronáutica do que responsabilizar
as empresas de radiodifusão comercial”, alerta o pesquisador do CPqD.
No
Brasil, segundo estimativas de entidades ligadas à radiodifusão comunitária,
existem hoje aproximadamente 20 mil rádios de baixa potência, das quais 2.745
possuem outorga. Porém, nenhum levantamento foi realizado para obter a precisão
desse número, uma vez que não há como controlar a abertura e o fechamento de
emissoras não-legalizadas. “As rádios de baixa potência, outorgadas ou não, na
sua maioria, utilizam equipamentos legais. Como não possuem muitos recursos, já
compram equipamentos homologados para que, quando a ANATEL analisar a
documentação jurídica e a estrutura técnica, os gastos não venham a aumentar”,
argumenta o Coordenador Jurídico da Associação Brasileira de Radiodifusão
Comunitária - ABRAÇO, Joaquim Carvalho.
Embora
contestado por especialistas, o argumento de que as transmissões das rádios de
baixa freqüência podem causar a queda de aeronaves é usado frequentemente como
justificativa para o fechamento das emissoras. Para Manhães, isso de deve ao
caráter técnico da questão, incompreensível para a maioria das pessoas, que,
“aliado à comoção que provoca ao atribuir grave risco a vidas humanas,
estabelece a aceitação desta cilada”. Usar tal argumento constitui, para ele,
mais uma tentativa de desmoralizar estes importantes mecanismos para a
democratização da comunicação, que são as emissoras de radiodifusão
comunitária.