terça-feira, 28 de setembro de 2010
A experiência de rádio comunitária no meio rural do Haiti: uma voz solidária e necessária
Talles Gomes
Via Campesina
HAITI, Magò (Pòdepè) - São necessárias três horas de caminhada por trilhas íngremes para chegar à comunidade Magò, zona rural do município de Pòdepè, Noroeste do Haiti. É de lá, no topo da montanha mais alta da região, contando com uma infra-estrutura que se resume a uma antena e uma casa com paredes de barro batido, que a rádio comunitária Zèbtènite trava sua luta para romper o isolamento imposto aos camponeses haitianos.
“A Zèbtènite foi criada para reivindicar e defender a voz dos camponeses”, afirma Crisman Estinord, repórter e um dos coordenadores da rádio. Fundada em 1996 por famílias camponesas integrantes do movimento Tét Kole Ti Peyizan, a Zèbtènite ocupa desde então a freqüência 97.1FM e funciona seis dias por semana, com seis horas diárias de programação. Ou melhor, funcionava. A passagem do Furacão Hanna em 2008 avariou parte dos equipamentos de transmissão, além dos painéis solares que disponibilizavam energia para a rádio. Sem eles, foi preciso recorrer ao aluguel de geradores e o alto preço da gasolina faz com que a Zèbtènite amargure dias ininterruptos sem transmissão.
Essas mesmas dificuldades são compartilhadas por boa parte das rádios comunitárias existentes no Haiti – que segundo dados da SAKS (Sociedade de Animação e Comunicação Social) chegam atualmente a 30, instaladas principalmente nas comunidades rurais. Para compreender o porquê dessas dificuldades e o papel estratégico que esses meios comunitários jogam na conjuntura atual do Haiti, é preciso ir um pouco mais afundo.
Predomínio das rádios
“Hoje, e desde sempre, o meio de comunicação mais importante no Haiti é a rádio”, informa Sony Estéus, jornalista e coordenador da SAKS. Isso se deve tanto a fatores culturais, como a tradição oral herdada da origem africana, como a fatores sócio-econômicos, o alto nível de analfabetismo – que atinge 39% da população – e a falta de infra-estrutura energética. “Há também a televisão, sobretudo nas cidades, quando há a eletricidade. Porque esse é um problema para a utilização dos meios, o problema da energia. O que faz com que a televisão não possa ser utilizada amplamente pela população. Há a imprensa escrita, mas muito pequena. Há somente dois jornais com circulação diária no Haiti. Esses são os três meios mais importantes, a rádio, em primeiro lugar, depois a televisão e a imprensa escrita”, afirma Sony. A utilização da internet como meio de comunicação começa a surgir como horizonte, mas ainda é incipiente devido a pouca difusão e dificuldade de acesso no meio popular.
Segundo dados oficiais, existem em torno de 290 meios de comunicação no Haiti, entre rádios e emissoras de televisão, com prevalência absoluta das rádios, cujo número chega a 250. A capital Porto Príncipe concentra 50 destas estações.
O surgimento das primeiras rádios no Haiti ocorreu durante os anos 1920, sob os auspícios de uma minoria econômica e comercial, à qual se somaram mais tarde os órgãos estatais de propaganda oficial. Isso se manteve sem muitas alterações nas décadas seguintes. Até que nos anos 90, as rádios comunitárias entram em cena.
O golpe militar de 1991, que tirou do poder o Presidente Jean Bertrand Aristide e reprimiu duramente o movimento popular que se fortalecia desde a queda da ditadura Duvalier em 1986, fechou todas as rádios comerciais que existiam no país. Sob tal repressão, e para furar o cerco da desinformação e marginalização impostas à população, um grupo de formadores e comunicadores progressistas inicia uma ação conjunta com as organizações populares para desenvolver meios de comunicação, sobretudo rádios, nas bases, nas áreas rurais, nas comunidades mais distantes. Este grupo se denominou SAKS - Sociedade de Animação e Comunicação Social. Por meio desta organização, e junto à iniciativa dos movimentos sociais, foram construídas as primeiras rádios comunitárias no Haiti, dentre elas a Rádio Zèbtènite, nas montanhas de Magò.
Concentração
No entanto, apesar de todo esse esforço, a maioria dos meios de comunicação ainda se encontra nas mãos da elite econômica. “Há uma tendência atual à concentração desses meios”, alerta Sony. “Antes, os proprietários dos meios eram jornalistas ou agentes de comunicação. Agora, a burguesia, os empresários, vão pouco a pouco adquirindo esses meios. Há, por exemplo, o caso de um único empresário que possui mais de doze meios de comunicação, entre rádios e televisão.”
Nessa conjuntura, ainda segundo Estéus, “pode-se dizer que há quatro correntes dividindo espaço no setor de comunicação haitiano. Há os meios com objetivos exclusivamente comerciais, que servem para enriquecer seus proprietários, mas, paralelamente, jogam um papel muito ideológico em apoiar o setor privado, apoiar a manutenção do *status quo* e a ideologia capitalista e neoliberal. Há uma outra corrente que é a religiosa. Ou seja, a Igreja Católica, as Igrejas Protestantes têm seus próprios meios, que fazem a evangelização, mas no mesmo sentido de manter o *status quo* na sociedade. Há os meios oficiais que fazem a propaganda política do governo.
E por fim há a corrente dos meios comunitários, que estão mais dedicados à educação, sobretudo à educação popular. São meios que apóiam a luta do povo, a luta das organizações, para a mudança social, para a transformação da
sociedade”.
Não seria equivocado, todavia, inserir uma outra corrente nesta disputa: a MINUSTAH [Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti], que ocupa militarmente o país desde 2004. Para fazer a propaganda e defesa de suas ações, há duas estações de rádio que trabalham todos os dias exclusivamente para a MINUSTAH.
Pós-terremoto
Este cenário se complicou ainda mais com o terremoto de 12 de Janeiro de 2010. Além da destruição de boa parte da infra-estrutura de muitas rádios, os haitianos presenciaram a entrada de um novo protagonista na disputa pela hegemonia das comunicações: a INTERNEWS.
INTERNEWS é uma ONG norte-americana financiada pelo USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional]. Aos desavisados, não custa lembrar que a USAID é uma agência governamental do governo estadunidense criada em 1961 com a missão de “promover os interesses da política externa dos Estados Unidos na expansão da democracia e dos mercados livres”, segundo informações de sua página oficial na internet. Com sede em Washington/DC, seu trabalho apóia “o crescimento econômico e os avanços da política externa dos Estados Unidos”.
Presente no Iraque, no Afeganistão e em todos os países onde os EUA fazem a guerra, a INTERNEWS aportou no Haiti dias após o terremoto de janeiro. Sua missão é gerenciar e produzir para as Nações Unidas e para o governo norte-americano tudo o que tenha a ver com comunicação em território haitiano. É a INTERNEWS, por exemplo, que produz o programa de notícias difundido massivamente em todas as rádios da ilha chamado “Enfòmasyon Nou Dwe Konnen” (*Informações que nós devemos saber*, no kreyòl). Mas, como ressalta Sony Estéus, “são informações que eles querem que nós saibamos! É uma situação muito complicada, porque estão funcionando sem controle das autoridades. O Ministério da Comunicação não tem nenhum controle sobre o que se faz na INTERNEWS, nem sobre o que se faz nas rádios da MINUSTAH.”
Desafios
“Vão fazer muito dinheiro”, é o que responde o coordenador da SAKS ao ser indagado sobre o que se pode esperar dos meios de comunicação comerciais no período eleitoral que se avizinha. “Vão fazer muito dinheiro com a publicidade para os candidatos e para o Conselho Eleitoral. Vão abrir seus microfones para todos os candidatos para que possam fazer suas próprias propagandas. Mas não podemos esperar análises ou posições críticas aos programas ou ao processo eleitoral como um todo”, conclui Sony.
É dentro desta perspectiva, tendo que superar os desafios da reconstrução do país pós-terremoto e sob uma ocupação estrangeira militar e econômica que se arrasta há décadas, que se pode compreender o papel clave que os meios de comunicação popular, em especial as rádios comunitárias, jogam no cenário atual do Haiti.
Do alto das montanhas de Magò, ao final de mais uma tarde de sábado, durante a hora e meia de transmissão permitida pela escassa gasolina dos geradores, a Rádio Zèbtènite toca músicas camponesas e populares, abre seus microfones para que um hougan [sacerdote da religião Vodou] comente sobre a atuação inócua do estado haitiano no atendimento às vítimas do terremoto e transmite um programa produzido pela SAKS sobre as conquistas democráticas e a conjuntura das eleições presidenciais de novembro. Quando o gerador para de funcionar e os equipamentos se apagam, de dentro do estúdio improvisado da rádio comunitária o operador Momis Likanes desabafa: “É difícil, realmente... mas temos que lutar.”