sexta-feira, 1 de outubro de 2010

RÁDIOS COMUNITÁRIAS: UM ACORDO OU UM BLEFE?


Por Dioclécio Luz

Representatividade

Ao final da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em Brasília de 14 a 17 de dezembro de 2009, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, Abraço, divulgou documento que trataria de um acordo fechado entre ela e o Governo. Este artigo analisa o fato.

A primeira questão a se avaliar é quanto a legitimidade e representatividade da Abraço para fazer um acordo que mexe com o interesse de todas as rádios comunitárias do país e não somente com as suas associadas. A Abraço é uma das entidades que lidam com rádios comunitárias no Brasil. Ela surgiu no final de 1996, em Praia Grande, litoral paulista e hoje tem filiadas em praticamente todas as Unidades da Federação. A entidade não tem sede própria, mas tem um site (www.abraconacional.org), criado em 2009.

Quando se fala em legitimidade e representatividade, é importante registrar que a Abraço, como toda entidade, representa seus pares, isto é, seus associados. Ela é uma associação (sem fins lucrativos) e não um sindicato; portanto, a Abraço tem o caráter de uma ONG, o que lhe impede de tratar seus filiados como “categorias de trabalhador”, por exemplo. Não se pode confundir entidade representante de categoria (caso dos sindicatos, que podem falar em “base” sindical) com entidade representante de um grupo (uma associação) de rádios ou de entidades que lidam com rádio, como é o caso da Abraço. Uma associação de pequenos agricultores é bem diferente de um sindicato de pequenos agricultores. Em ambos os casos há mobilização e organização, mas somente o sindicato de fato representa oficialmente a categoria. Tanto que o aval de funcionamento para o sindicato é concedido pelo Ministério do Trabalho e Emprego; o sindicato será único na região, e terá legitimidade para representar a categoria perante o Estado. Quanto às associações, elas podem ser criadas conforme a vontade da sociedade organizada, para representar os interesses exclusivos dos seus sócios. E são eles que lhe dão legitimidade. Não é papel do Estado legitimar associação. Ele pode firmar convênios, parcerias, até mesmo atribuir “diplomas” para uma ONG, como o de “utilidade pública”, mas não vai além disso.

Feitas as ressalvas quanto a legitimidade da Abraço (e de todas as associações), podemos analisar sua representatividade.

A Abraço é uma entidade que atua em determinado segmento da sociedade, o das rádios comunitárias. Mas, claro, ela não representa todo o segmento. Ela representa, dentro do movimento, como diria Gramsci, uma parcela desse movimento, a parcela dos que são associados à Abraço. Isto é, o óbvio: a Abraço se representa (seus associados) no movimento e junto às demais instâncias da sociedade (incluindo o Estado). E não o contrário. Por ser uma entidade privada que representa seus associados, não pode falar por todo o movimento; não pode falar em nome das “rádios comunitárias”, no seu sentido genérico. Claro, pode falar como elemento de retórica, em defesa das rádios comunitárias de uma forma geral, mas não tem a representatividade de todas as rádios comunitárias para falar em nome delas, ou de propor algo em nome delas.

Como retórica a Abraço pode defender este ou aquele argumento, mas não pode afirmar que “as rádios comunitárias querem isso ou aquilo”, “defendem isso ou aquilo”. Seu posicionamento é o posicionamento da Abraço (isto é, de um grupo de pessoas) e não de todas as rádios, ou de representantes de todas as rádios. Ao se posicionar perante a sociedade ela não pode falar em nome de todas, mas apenas em seu nome. A Abraço pode ter legitimidade ou não perante a sociedade por razões políticas e éticas, mas a representatividade, em qualquer momento, limita-se ao seu grupo. Do mesmo modo como ninguém pode criar algo como a “Associação nacional dos moradores de favela” e cobrar do Governo e da sociedade que o aceitem como representante de todos os moradores de favela.

A questão da legitimidade e representação pode ser usada intencionalmente para confundir a opinião pública. Entidades se apresentam como “o movimento social”, ou “representantes da sociedade civil” para obter espaço político. E o Estado muitas vezes aceita isso. Ou por ignorância dos seus agentes ou por má fé – quando, por exemplo, para enganar a opinião pública, e criar a imagem de defensor da democracia, convida para o debate o parceiro de partido ou de interesses, devidamente qualificado como “representante do movimento social”. No atual contexto político essa questão de movimento social representando por entidades é tão forte que fica excluído do debate aquele que não tiver o crachá de alguma entidade.

Por isso assumir um cargo de direção na entidade é uma das estratégias mais usadas pelos que se dedicam unicamente ao jogo da política, principalmente os oportunistas, aqueles que nada produzem a não ser uma verborragia inútil, pretensamente revolucionária. Qualquer cargo lhe basta. O importante é um crachá. Para que o espertalhão possa se apresentar como representante de tal entidade que, por acaso, “representa o movimento social”. Há personagens tão espertos que, na falta de espaço na entidade, ele cria sua entidade; e há entidades tão fajutas que aceitam que qualquer um se apresente como seu representante.

Mas, voltando à questão das entidades...

De um modo geral, elas costumam fazer um rodízio na direção. É uma prática democrática. E com a Abraço não é diferente: mas em 13 anos de existência a entidade teve somente dois presidentes e uma direção colegiada. Isso, porém, não vem ao caso. A questão vale para todas as entidades: a direção eleita representa todo colegiado? Representa politicamente, claro, mas não necessariamente no conjunto. E isso vale não apenas para associações, mas também para sindicatos. Lula é o presidente de todos os brasileiros, mas as suas posições não são necessariamente as que eu defenderia. O presidente do Sindicato dos Jornalistas, em quem eu votei, pode tomar atitudes que são contra a minha vontade – isto é, embora tenha legitimidade para atuar em nome dos jornalistas não necessariamente representa meus interesses.

Na verdade, quando um grupo chega ao poder (à Presidência da república ou da associação dos caçadores de coelho marrom) na melhor das hipóteses ele representa bem mais os seus parceiros de grupo que o conjunto dos associados. Mas e quando a eleição foi forjada, com delegados comprados e houve desvio de grana para campanha? Este que se elegeu representa todo coletivo? Evidente que não. Não estamos dizendo, claro, que isso aconteceu na Abraço. Estamos apenas reafirmando que a direção de uma entidade (seja lá qual for) é um grupo que, embora legitimada do ponto de vista estatutário e diante das leis, não necessariamente defende seus associados; mas, com certeza, defende os interesses do grupo majoritário.

O Estado

Analisada a questão da entidade, o que dizer sobre o Estado brasileiro assinando este “acordo”?

Corrija-se: o tal acordo é um pretenso documento de duas laudas, sem timbre, assinado por três representantes do Estado: Marcelo Bechara, consultor jurídico do Ministério das Comunicações; Otoni Fernandes Junior, sub-chefe-Executivo da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República; Gerson Almeida, Secretário nacional de articulação social da Secretaria Geral da Presidência da República. Curiosamente, o texto, divulgado como um acordo feito entre a Abraço e o Governo, não traz a assinatura de nenhum dirigente da Abraço! Como uma entidade faz um acordo e não assina o papel que viabiliza esse acordo? (O documento está disponível em: www.abraconacional.org/primeira_pagina/resultados_confecom.pdf)

Outras dúvidas são pertinentes: quem delegou a esses funcionários de Governo o poder de assinar um documento em nome do Estado? Não caberia aos ministros, seus chefes, essa responsabilidade? Qual a validade de um documento assinado por funcionários do segundo e terceiro escalão? A responsabilidade que esses agentes estão assumindo pode ser cobrada? Qual a validade e legitimidade desse documento sem timbre oficial do Estado e muito menos da entidade privada, a Abraço?

São perguntas cujas respostas evidenciam a precariedade do documento. O fato é que o Estado brasileiro não poderia fechar acordo com uma entidade privada, uma associação, uma ONG, sobre um conjunto de ações a serem desenvolvidas que dizem respeito a todas as rádios e não apenas à Abraço. A Confecom poderia (e foi) o fórum adequado para se discutir e avaliar propostas para o setor, mas o pretenso acordo foi estabelecido com uma só entidade, a Abraço; e extra-Confecom.

Tudo isso nos leva a imaginar que o documento seria apenas uma carta de intenções políticas. No melhor sentido, uma promessa sem garantias; no pior sentido, uma farsa, construída com o fim de enganar o movimento e exibir um falso poder político da Abraço sobre o Executivo. Não há como averiguar onde está a verdade. No entanto, uma coisa é certa, os que assinaram este documento – entre eles o consultor jurídico do ministério das comunicações – sabiam que ele não é um documento e muito menos um acordo – está claro que ninguém pode cobrar a sua execução dos que o assinaram (funcionários subalternos no Estado) em nenhuma instância jurídica. Isto é, qual a validade de um acordo que não pode ser cobrado? Considere-se ainda que o consultor jurídico do Minicom, findada a Confecom, foi trabalhar na Anatel. Se antes não representava o Minicom, muito menos agora.

O fato é: não há acordo.

Os termos do acordo não firmado

Feitas as ressalvas quanto à legitimidade e representatividade da Abraço junto ao Estado e à sociedade, bem como a relação desse documento com o Estado brasileiro, podemos agora avaliar o seu conteúdo.

O texto de abertura é confuso, juntando concepções genéricas sobre a importância da Confecom, a importância das rádios comunitárias e a democratização da mídia, e informando que “a Abraço é uma organização que congrega entidades que tem interesse nesse serviço de radiodifusão”.

O quinto parágrafo do documento é o que nos interessa. Diz lá:

“Muitas das iniciativas da entidade são propostas apoiadas pelo governo, outras inclusive já encaminhadas” (sic).

Estas duas linhas de texto abrem, sem os dois pontos de praxe, para as linhas desse pretenso acordo. Acordo?

Isto é importante: embora a Abraço diga que foi fechado um acordo aqui não diz isso. O fato é que não como entender nessas duas linhas que se trata de um acordo. O texto não diz isso!

Insistimos, quem assinou o documento estava ciente de que não estava assinando um acordo. A palavra “acordo” – ou algo parecido - não aparece no documento. Portanto, mesmo que este papel fosse assinado pelos três ministros, nos termos em que foi redigido, não tem nenhuma validade. Ninguém pode cobrar nada na Justiça. Aliás, em lugar nenhum. Não há como cobrar do Executivo pelo que “prometeu”, porque não foi prometido nada. Hoje, se cobrados, qualquer um dos três que assinaram o documento podem questionar: “mas onde, no texto, diz que nós fizemos um acordo ou assumimos o compromisso de que faríamos isso ou aquilo?” É verdade não tem isso. Ninguém pode ser cobrado por assinar acordo e não cumprir se o texto não diz isso. Esse papel é um blefe.

Se fosse um acordo, o documento, no mínimo, deveria conter expressões como: “as partes acordam em...”; ou, “o ministério X se compromete a...”; ou, “por este acordo, cabe ao ministério X e a secretaria Y fazer...”; ou, “por este documento nos comprometemos a...”; ou, quem sabe, “em nome das instituições que representamos nós, abaixo assinados, nos comprometemos a...”; ou ainda, “a Presidência da República se compromete a...”. São várias as opções de texto, mas nenhuma delas está no texto. Por este documento (se é que é um documento), os signatários podem até viabilizar algumas propostas, mas não há nada que os obrigue a fazer isso, o documento que assinaram não diz isso. Portanto seu valor é zero. Um acordo decente prevendo a realização de algo por uma das partes tem prazo. Este documento não aponta prazo nenhum. Ele é inútil sob todos os pontos de vista. Insistimos, eis um grande blefe.

Será que os funcionários do Estado que assinaram o acordo não perceberam isso? Será que os dirigentes da Abraço não perceberam que o texto não trata de acordo, compromisso, ou algo parecido? Será que os envolvidos (dirigentes da Abraço e representantes do Estado) não notaram que o papel assinado não vale nada porque não há acordo ou compromisso? Será que os dirigentes da Abraço continuam divulgando esse documento inútil como acordo porque, inocentemente, acreditam que se trata de um acordo? Ou estão sendo cúmplices desse blefe?

É preciso ainda observar dois aspectos deste papel: 1) a redação é confusa, deixando margem à dúvidas e subentendidos; 2) é um documento sem data!

Já não bastasse a ausência de prazos, também falta a data em que o “acordo”, foi firmado. Ora, como se pode considerar tal papel como documento, ou “acordo”, se ele não tem o timbre oficial de nenhuma entidade ou do Governo, não deixa claro que é um acordo entre as partes, não tem a assinatura de uma das partes, e não tem a data em que foi elaborado?! Heitor Reis, engenheiro e antigo militante da área, além de também observar questões como estas, no artigo, “Professor de comunicação manipula a informação!”, faz notar ainda que o “documento” assinado pelos três personagens do Estado nem título tem!

O que é isso, então? Um engodo. Uma farsa. Um blefe. Não existe acordo! Defender esse papel como “acordo da Abraço com o Governo” é mentir para os militantes das rádios comunitárias.

Feitas essas digressões, analisemos as propostas da Abraço contidas nesse papel divulgado como “acordo”:

a) “Criação da subsecretaria de Radiodifusão comunitária”.

A proposta é antiga e perfeitamente válida. Os dois Grupos de Trabalhos (GTs) já tinham feito essa proposta, mas até hoje o Governo a desprezou.

b) “Abertura de aviso de habilitação permanente...”

Uma boa proposta.

c) “Criação de lista única (disponibilizada na internet) dos processos...”

Se este Governo cumprisse a Constituição e os princípios da administração pública estabelecidos em lei ordinária quanto à transparência não precisava que lhe cobrassem isto.

d) Agilização dos processos com a contratação de mais servidores.

Outra boa proposta. E também das antigas. Foi apresentada pelo primeiro GT, há mais de 5 anos. É que o Governo tem o hábito de criar GTs e depois jogar no lixo suas conclusões e propostas.

e) “Realização de mutirão com o intuito de colocar em dia os processos que estão em tramitação no Ministério das Comunicações”.

Mais uma proposta que não é novidade.

f) “Consideração de processos, de solicitação de outorga, arquivados pelo Ministério das Comunicações” (grifo nosso).

Entenda-se a expressão “consideração” como uma proposta de reavaliação dos processos arquivados. A medida é boa, afinal muitas emissoras foram discriminadas por razões políticas ou religiosas. O ideal, porém, seria uma revisão de todos os processos, incluindo as autorizadas.

Existe um número considerável de emissoras que não são comunitárias, mas têm autorização. Elas pertencem à igrejas ou políticos. O Ministério das Comunicações deu a outorga para essas emissoras. Trata-se de ilegalidade divulgada várias vezes aqui nesse Observatório. Vide o trabalho executado pelo professor Venício Lima e pelo consultor da Câmara, Cristiano Lopes, denunciando a distribuição de rádios comunitárias para padres, pastores e políticos.

Portanto, antes de tentar dar rapidez ao processo, seria necessário sanear o lugar em que os processos tramitam. Ou corremos o risco dessas ilegalidades continuarem ocorrendo. O problema é que o Governo não cumpre a lei. Se este fosse um país sério o ministro Hélio Costa, e aqueles que promoveram tais irregularidades, contrariando o que diz a Lei 9.612/98, certamente estariam sendo submetidos a um processo administrativo por agredirem a legislação das rádios comunitárias e por acatarem o tráfico de influência dentro do ministério.

Por que a Abraço não incluiu entre as suas propostas o saneamento do setor, algo tão necessário para quem faz rádio comunitária?

g) “Criação de representações estaduais do Ministério das Comunicações...”

Uma boa proposta. E o Governo costuma prometer viabilizá-la... no futuro.

h) “...nenhum processo de solicitação de outorga poderá ser indeferido sem que seja oferecido ao solicitante ampla possibilidade para adequação as exigências legais”.

Isto já deveria estar ocorrendo. É um direito. O Governo, porém, não aceita.

i) “revogação da legislação que considera crime a operação de emissoras sem autorização, tendo inclusive encaminhado Projeto de Lei neste sentido, ao qual serão aceitas emendas” (sic) grifo nosso.

Esta é a questão mais temerária neste pretenso acordo da Abraço com o Governo. O Projeto de Lei (PL) encaminhado ao Congresso Nacional pelo Governo (nº 4573/08), ao qual se refere o texto do “acordo”, é um ato de má fé do Executivo. O referido PL torna maior ainda a repressão às rádios comunitárias. Sobre o tema publiquei artigo neste Observatório denunciando a proposta indecente do Governo.

Fontes dentro da Abraço dizem que a entidade negociou com o Ministério da Justiça a redação deste PL. Talvez não seja verdade. Mas, se for, a Abraço terá cometido uma das ações mais vis contra quem foi punido por colocar no ar emissora sem autorização. Defender uma proposta como essa é trair aos muitos guerreiros e guerreiras que enfrentaram os agentes da Anatel e da Polícia Federal, muitas vezes armados de fuzis e metralhadoras.

O PL do Governo é um complexo emaranhado de citações de outras legislações, corrigindo ou eliminado artigos aqui e ali, acrescentando expressões, e dando a impressão de que busca uma melhoria na legislação. E não é verdade. O texto oblíquo, quase parnasiano, tinha uma intenção: fazer-se complexo para confundir o leitor, e assim ele não percebesse que o projeto é um engodo.

Pelo PL, agora quem vai tratar de “rádio pirata” não é a legislação referente à comunicação, mas o Código Penal.

Por exemplo, havia no Código Penal punição para quem “expõe a perigo” e outra punição no caso de “naufrágio,... queda ou destruição de aeronave”. Se o acidente ocorria, a punição era maior. Existe uma diferença muito grande nisso. O PL do Governo diz que basta a pessoa expor a aeronave ao perigo (não precisa que ocorra o acidente) para que ela seja condenada a pena de reclusão de dois a cinco anos. Hoje esse tipo de ameaça (reclusão) paira somente sobre aquelas emissoras sem autorização; se esse projeto for aprovado todas podem ser citadas. O PL, portanto, é uma tentativa camuflada de legitimar os abusos hoje cometidos pelos órgãos de repressão.

Em resumo, diz a proposta do Governo, que a Abraço estaria apoiando com esse “acordo”:

1) O Código Penal - e não mais a Lei 4.117/62 ou a Lei 9472/97 – pode ser o instrumento central para reprimir as emissoras, autorizadas ou não.

2) Emissoras autorizadas ou não autorizadas podem ter seus equipamentos apreendidos e seus dirigentes podem ser submetidos ao processo penal. (Antes isso ocorria somente com as não-autorizadas).

3) No Código Penal substitui-se a pena de “detenção, de um a seis meses, ou multa (art. 151) por uma de “reclusão de dois a cinco anos” (art. 261). Trocou seis por meia dúzia mais um pouco.

4) A redação permite uma leitura subjetiva sobre a existência de crime. Um juiz, ou mesmo um desses agentes (!), pode achar que a emissora está provocando interferências em sistemas de segurança, equipamento hospitalares (aparelho de tomografia diz o texto!), telecomunicações e aeroviário, e fechar a emissora.

O leigo pode até acreditar que falta realmente um Projeto de Lei que anistie os que estão sendo punidos por colocar rádio sem autorização. Mas não é o fato. Quase meia de dúzia de Projetos de Lei tramitam na Congresso Nacional tratando de anistia. Em meados de 2008 a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados aprovou relatório com substitutivo do deputado Walter Pinheiro (PT-BA), pela anistia. O substitutivo é bom. E foi encaminhado à última comissão da Câmara, prevendo, se aprovado, ir ao Senado e então à sanção do presidente Lula. Restavam somente dois passos.

Mas o Governo Federal não estava satisfeito com uma provável anistia dos radialistas e dirigentes de rádios comunitárias. E encaminhou este PL (nº 4573/08) ao Congresso Nacional, que, como vimos aqui, é mais que um retrocesso, é uma ação maquiavélica contra as rádios comunitárias.

Quem defenderia este projeto? O Governo, certamente, considerando sua postura histórica contra as rádios comunitárias. Mas e a Abraço? Com o “acordo”.

O texto do documento sugere que ao PL “serão aceitas emendas”. Como emendas? Se já temos um PL de qualidade, aprovado na Comissão de mérito, porque deveríamos aceitar esse trambolho e nele fazer emendas? Como se remenda algo que já nasce um traste velho, podre, mofado? Não há como. A pergunta correta é: se já temos um bom PL por que deveríamos tentar remendar o lixo? Por que veio do Governo? Por que veio do PT? É injustificável para a Abraço, ou outra entidade que atua no meio, a defesa de um Projeto de Lei que é contra as rádios comunitárias.

E tem mais, propor “fazer emendas”, como diz o texto, é criar uma falsa expectativa. Quem conhece o mínimo do parlamento nacional sabe o quanto é difícil fazer emendas ao texto. Seria preciso uma articulação fabulosa envolvendo partidos e parlamentares, para fazer aquilo que parece óbvio: defender o PL substitutivo de Walter Pinheiro e jogar no lixo o PL encaminhado pelo Governo.

j) “comprovação da interferência por laudo técnico de engenheiro. Notificação da emissora outorgada para apresentação de defesa prévia. Caso a defesa prévia não seja aceita, notificação estabelecendo prazo para a emissora outorgada se adequar às especificações técnicas. Caso não seja atendida a notificação deverá ser aplicada multa. Em caso de reincidência aplicação de multa com o valor dobrado. Em caso de nova reincidência, apreensão dos equipamentos” (sic).

A proposta é positiva.

k) “Aumento do número de canais (...) com a alocação de, no mínimo, três canais na faixa de 88 a 108 MHz. A existência de um único canal para as rádios comunitárias gera problemas nas grandes cidades”.

A proposta não é ruim, mas merece um debate. Primeiro, três canais na faixa de FM pode ser demais. O certo é estabelecer uma partilha do espectro. Algo assim: um terço para emissoras comerciais; um terço para comunitárias; um terço para estatais e educativas.

Quanto a gerar problemas nas grandes cidades isso é meia verdade. Um só canal gera problemas em todas as cidades – grandes ou pequenas. Basta aparecer uma outra rádio comunitária e os sinais vão se bater no ar.

l) “destinação de publicidade institucional e de utilidade pública considerando a lei”.

A redação é insatisfatória. Faltou dizer a quem cabe a destinação de publicidade. Imagina-se que do setor público. Imagina-se... Mas faltou o principal, estabelecer uma definição para apoio cultural, algo que a Norma Operacional 01/04 falsamente define e os agentes da Anatel, conforme o humor, multam quem acha que merece ser multado.

m) “Liberação de rede entre rádios comunitárias em casos de calamidade pública”.

Proposta desnecessária. O artigo 16 da Lei 9.612/98 já estabelece isso. Na verdade, o que as rádios querem é o direito de entrar em rede para veicular programas, em especial as redes de jornalismo, como existem em algumas regiões do país. Entrar em rede para cobrir calamidades já está na lei.

Propostas

Já que se fala em propostas, seria o caso de apontar algumas que faltaram nesse documento divulgado pela Abraço. Eis algumas propostas deixadas de lado pelas partes envolvidas:

1) Fim dos negócios políticos com rádios comunitárias na Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República. Existe uma vergonhosa central de favores funcionando no Palácio do Planalto, liberando processos de rádios para aliados e parceiros.

2) Canais para rádios comunitárias, somente dentro do espectro eletromagnético de FM. A Anatel insiste em locar todas as rádios comunitárias fora do dial, abaixo de 88 MHz. Algumas emissoras, como a de Heliópolis, São Paulo, foram obrigadas a fazer isso. E o resultado é catastrófico - ninguém escuta a rádio. E por uma razão simples, os aparelhos de rádio não foram construídos para captar abaixo de 88 MHz.

3) Proteção contra interferências. O artigo 22 da Lei 9.612/98 diz que as rádios comunitárias não têm proteção contra interferências das comerciais, mas se ocorre o contrário, se uma emissora comunitária interfere em outro serviço será devidamente punida.

4) Alcance/potência: conforme as dimensões da comunidade.

5) Fim da exigência de que os diretores devem morar dentro do raio de alcance da rádio, 1 Km, conforme estabelece a Norma 01/04.

6) Definir “apoio cultural” como publicidade ou patrocínio do programa.

7) Revogação do art. 70 da lei 4.117/62, criado pelo regime militar. Revogação do art. 183 da Lei 9472/97 (Lei Geral de Telecomunicações). Os dois dispositivos são usados na repressão ás rádios de baixa potência. Edição de Medida Provisória anistiando os punidos por eles.

8) Revogação do Art. 3º da Lei 10.871/04, atribuindo aos agentes da Anatel o poder de “interditar estabelecimentos, instalações ou equipamentos, assim como a apreensão de bens ou produtos, e de requisitar, quando necessário, o auxílio de força policial federal ou estadual, em caso de desacato ou embaraço ao exercício de suas funções”. Antes de chegar ao poder, através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), o Partido dos Trabalhadores questionou esse poder da Anatel no Supremo Tribunal Federal. Mas, depois que chegou ao poder, o Governo petista encaminhou ao Congresso Nacional, projeto (que se tornou a lei 10.871), defendendo exatamente o contrário do que falava antes. Isto é, o que era inconstitucional agora é lei.

9) Criar fundo para as rádios comunitárias. Há diversos projetos neste sentido tramitando no Congresso Nacional.

Infelizmente o Governo Lula chega ao final do mandato de forma melancólica no que se refere às rádios comunitárias. Ao longo desses quase 8 anos os emissários do Governo (burocratas, tecnocratas, ou carrapatos do poder) enviados para dialogar com o movimento das rádios comunitárias mudaram de discurso, mas não de prática. Eles sempre tentaram enrolar, engabelar, enganar, criando GTs, fazendo propostas que se sabem inexequíveis. O pretenso acordo, apresentado ao final da Confecom, é mais uma tentativa de engabelação. Apesar da propaganda, ele não tem nada de formal, de legal, de oficial. Pode ser considerado, no máximo, uma conversa que se pôs no papel. E uma conversa que mais recua que avança, mais se submete que dá autonomia ao movimento das rádios comunitárias. Enfim, divulgar esta conversa enviesada (quando se acatariam propostas que são contra o movimento) como se acordo fosse, é sustentar a farsa, é ir contra as rádios comunitárias.

Acordo não há. Acordo não está no papel. O Governo não tem nenhum compromisso com aquilo que está ali. E se por acaso ele resolver implantar algumas dessas propostas será por razões políticas, talvez para reduzir a imagem negativa que tem junto às rádios comunitárias, e jamais por causa de um acordo, ou do que está nesse papel sem timbre, sem data, sem a assinatura de uma das partes, sem prazos, sem compromissos firmados. É triste que reconhecer que se trata de mais um blefe.

Dioclécio luz é jornalista, autor dos livros, “A arte de pensar e fazer rádios comunitárias” e “Trilha apaixonada das rádios comunitárias...”, mestrando em comunicação da Universidade de Brasília.