A Constituição de 1988 é clara ao estabelecer a necessidade de se
garantir a complementaridade do sistema de comunicação no Brasil, que deve ser
composto por mídias comerciais, públicas e estatais. Mas o artigo 223 sequer
chegou a ser regulamentado, e as poucas experiências de comunicação pública
existentes estão em vias de serem desmontadas.
Em São Paulo, uma greve de seis dias jogou luz ao desmonte da RTV
Cultura. Entre os dias 8 e 14 de setembro, radialistas e jornalistas da
emissora, juntos, promoveram uma greve geral. A reivindicação de emergência?
Reajuste dos salários. Afinal estes não foram reajustados conforme acordo
coletivo firmado entre as duas categorias – representadas por seus sindicatos –
e as empresas de mídia privada.
As perdas, segundo os próprios sindicatos, chegam a 25% no caso
dos jornalistas, que tiveram o último reajuste salarial em dezembro de 2013, e
a 20% no caso dos radialistas, que tiveram o último reajuste de salário em maio
de 2014.
O pano de fundo desta greve – como não poderia deixar de ser – é,
no entanto, a resistência para que a comunicação pública não seja totalmente
esfacelada. Não se trata de um problema novo. Há pelo menos dez anos,
radialistas, jornalistas, entidades de classe e organizações da sociedade civil
têm denunciado o sucateamento que vem sendo imposto à RTV Cultura de São
Paulo. Estes grupos estão, desde 2015, organizados na campanha “Eu quero a RTV Cultura Viva!”
A falta de investimentos em recursos humanos, a consequente a
diminuição no número de funcionários e a não realização dos reajustes conforme
convenção coletiva das categorias são apenas a ponta do iceberg de um
verdadeiro desmonte da comunicação pública que segue em curso no Estado de São
Paulo.
A RTV Cultura é gerida pela Fundação Padre Anchieta. Em seus mais
de 40 anos de produção e difusão de programação (ela foi criada em 1960 e
reinaugurada em 1969), foi inúmeras vezes considerada a melhor emissora do País
em qualidade da programação e já figurou entre os melhores canais do mundo em
programação educativa.
É também considerada um patrimônio dos paulistas (e dos
brasileiros), que cresceram assistindo – até então – sua distinta programação
infantil. E, durante um bom tempo, a emissora chegou a se tornar cabeça de rede
de outras emissoras estaduais, fornecendo uma vasta programação a estas
emissoras, sobretudo, programação infantil.
Hoje, basta sintonizar o canal para perceber que muita coisa
mudou. E para pior. Muitos programas originais realizados dentro da própria
emissora já não existem mais (o programaViola
Minha Viola causou
comoção ao ser cancelado em 2015) e a programação tem sido substituída por
enlatados, muitos destes voltados às crianças – caso de Paw
Patrol(Patrulha Canina), Shimmer e Shine e Winx Club – este último com forte apelo de
produtos voltados ao consumo infantil.
O número de funcionários da TV Cultura caiu pela metade nos
últimos dez anos. Além disso, o interesse público que deveria orientar a grade,
aos poucos, vem sendo substituído pela busca implacável por audiência.
Mesmo com a greve, a direção da Fundação Padre Anchieta sequer
apresentou proposta concreta para negociar um acordo coletivo específico com os
trabalhadores, demonstrando total descaso com os funcionários e com a própria
continuidade do serviço de radiodifusão – houve cancelamento do Jornal
da Cultura do horário
do meio dia no dia 12 de setembro.
Apesar disso, na primeira audiência de conciliação, realizada no
último dia 13, no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP), os
trabalhadores obtiveram uma importante vitória, já que o caso será levado a
julgamento pela Justiça do Trabalho. Os trabalhadores também não terão desconto
dos dias parados e terão estabilidade de emprego garantida até o julgamento do
dissídio.
Desmonte da EBC
No início de setembro, o governo Michel Temer editou a
Medida Provisória 744, acertando em cheio o coração da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC), ao extinguir o princípio que afirma a autonomia em relação
ao Governo federal para definir produção, programação e distribuição de
conteúdo no sistema público de radiodifusão (previsto no parágrafo VIII do art.
2 da Lei nº 11.652/2008). A MP também pôs fim no Conselho Curador da empresa,
órgão responsável por garantir a participação social na definição dos
princípios que devem reger as emissoras que compõem o sistema.
A ideia da gestão autônoma de governos com participação da
sociedade via Conselho Curador era, até então, dois dos principais pilares do
projeto de comunicação pública, criado em 2009, para atender ao preceito
constitucional da complementaridade. Além destes, outro pilar fundamental era a
busca por consolidar um sistema público em rede, que fosse capaz de promover a
cultura nacional e ao mesmo tempo estimular a produção regional e
independente.
Para isso, foi criada a Rede de Comunicação Pública, em 2009, que
fomentou a distribuição de conteúdos entre as várias emissoras estaduais e a
EBC. Uma experiência embrionária de um sistema público de comunicação em nível
nacional, cujos rumos neste momento são imprevisíveis.
Embora o sucateamento da RTV Cultura não seja recente, é possível
fazer um paralelo entre ele o desmonte pretendido na EBC. Isso porque, ainda
que o desmonte da EBC possa parecer um fato isolado na conturbada conjuntura
pela qual passa o país, ao que parece, possui, assim como no caso paulista, o
mesmo embasamento político: corte de gastos.
Na base deste argumento está a visão de que o Estado não deve ser
o garantidor do direito à comunicação, logo, não deve prover o financiamento
das emissoras públicas.
CartaCapital