Aperte o play e curta nosso som

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Direitos humanos no rádio

Urariano Mota *

No mais recente 13 de fevereiro, foi comemorado o Dia Mundial do Rádio. Em boa utilização desse aniversário, a diretora-geral da Unesco Irina Bokova declarou que o acesso público à informação é essencial para fortalecer o Estado de Direito. E mais:


“A alfabetização midiática e informacional nunca foi tão essencial para construir a confiança na informação e no conhecimento, em uma época em que as noções de ‘verdade’ são desafiadas”. O que vale dizer, o rádio também pode promover os direitos humanos, que no geral vêm sendo tão desprezados por comunicadores reacionários no Brasil e no mundo. 

Bem sei por experiência a intensidade da luta no ar, que não gera socos no vazio. Há muito, conheço como anda a opinião pública intoxicada de ódio e terror. Lembro, primeiro, de um programa de direitos humanos no rádio, o Violência Zero, em que estivemos eu, Rui Sarinho e Marco Albertim, o excelente escritor e jornalista que perdemos há pouco. No estúdio da Rádio Tamandaré do Recife, na altura dos anos 80, sentíamos a disputa de ideias na sociedade recifense entre punir sem medida e o direito à justiça. Ainda que sem método científico, pelos telefonemas dos ouvintes notávamos que a divisão entre os mais bárbaros e civilizados era quase meio a meio. 

Naquele tempo do Violência Zero no rádio, ainda não sofríamos o massacre das imagens repetidas na televisão, nem estávamos num momento de crescimento da direita no congresso. A luta era pelo alargamento dos limites da democracia. Havíamos saído de uma ditadura, mas a dominação ainda não vinha dos deputados e senadores mais afoitos contra os direitos humanos. Antes, as insinuações do “só vai matando” ficavam restritas aos guetos dos programas policiais no ar. 

Na Rádio Tamandaré, militávamos – pois o nosso jornalismo era uma militância sem descanso - aos sábados no Violência Zero, com patrocínio do Ministro da Justiça Fernando Lira. E na mesma rádio, aos domingos pelas manhãs, vinha o Acorda, Camponês. O Acorda era patrocinado pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco, e foi uma coisa muito bonita, até em resultados de audiência. Durante vários meses o Acorda, Campónês foi líder de audiência do rádio em Pernambuco, a partir das 5 da manhã, e de tal modo que chegou a “derrubar” o legendário Forró do Lacerdinha, da Rádio Clube, que existia no rádio desde quando éramos criancinhas.

Para o leitor ter uma ideia da repercussão desse programa, divulgo duas cartas que nos foram dirigidas, e que lemos no ar. De passagem, devo dizer que só recebíamos as cartas porque elas iam para o endereço da Federação dos Trabalhadores, caso contrário poderiam ser lidas por terceiros e arremessadas ao lixo da emissora. Para esse nosso Acorda, Ruy Sarinho e Marco Albertim produziam, faziam reportagens e editavam. Eu me improvisava de apresentador, com direito a virar repórter, sempre que necessário. O certo é que duramos dois anos no ar todos os domingos, das 5 às 6 da manhã. Os usineiros e donos de engenho de Pernambuco a princípio não sabiam que o programa era gravado, e ligavam para a emissora, ameaçando invadir o estúdio para acabar na bala aquela subversão.

Como era possível um programa de denúncia, de esclarecimento dos direitos do trabalhador do campo, ser tão ouvido e amado? Em outra oportunidade, tentaremos responder.

No fim, o “Acorda, Camponês” saiu do ar de forma brusca, sem aviso prévio, como quem despede um moleque, na Rádio Tamandaré, do Sistema Verdes Mares de Comunicação. Notem: era um programa pago à emissora, no preço que ela ditou, com números recordes de audiência, em um horário “morto” da madrugada. E fomos cortados de forma arbitrária, sem explicações. Fiquemos então com este feliz acaso, descoberto pela senhora Francêsca, que suporta a pessoa do colunista no papel de marido. Olhem só a cópia de duas cartas:

“Engenho Pranalto, 17-5-88

Saudação

Eu estou escrevendo esta minha carta a este brilhante maravilhoso programa acorda camponês, que eu estou toda de manhã com o meu rádio no travesseiro ouvindo acorda, camponês. Eu fico muito feliz de ouvir vocês falar. Vocês falam que está difícil pra essa reforma da terra sair. O que está faltando é se unir todos os trabalhadores, se unir um com outro trabalhador, rurais da cidade e periferia, trabalhadores das indústrias, todos esses trabalhadores se unir. Então assim essa reforma agrária da terra era resolvida.

Esteja sempre ao nosso lado nos ajudando. Vocês sabem, tudo unido vai avante, assim nós seremos nós mais nossa luta. Vocês olhem e pensem e meditem das produções e demais trabalhadores do campo. Nos ajudem para nós alcançar a vitória da reforma agrária da terra.

Lembrança ao radialista que foi ao acorda, camponês. Eu também vai lembrança e um forte abraço pra Sinésio. Não se esqueça de mim. Todo domingo estou ligado ao programa acorda camponês. Aqui eu fico com estas minhas palavras. Desculpe os erros.

Fim

Francisco Gomes Barbosa”

“Engenho Acaú, 3 de 4 de 88

Prezados companheiros que fazem o programa acorda camponês. É pela terceira vez que escrevo para este maravilhoso programa. Venho por meio desta dizer-lhes que sou um ouvinte autêntico deste programa e do violência zero. Aí vai o nosso sincero abraço para todos que fazem os mesmos… Companheiro, aí vai um apelo para que a Fetape, a Contag e todas as entidades sindicais façam esta pergunta a nossas autoridades, que constituem o nosso país, principalmente o nosso ministro e ao nosso presidente e governo do estado Pernambuco, e todos os trabalhadores de Pernambuco queremos saber desta resposta.

Eis aí:

Como podemos viver neste país? Se roubamos, vamos presos. Se assaltamos, também. E se vamos trabalhar para alimentar os nossos filhos e para a grandeza do nosso país, somos mortos. Só agradecemos todos os trabalhadores de Condado.

Peço que leia, mas não anuncie o meu nome, pra eu não ser ameaçado, que aqui a boca é quente. Nós do município de Condado queremos justiça pelo que aconteceu em nosso município e vem acontecendo em nosso país. Só nosso sincero abraço, assina aqui o trabalhador

(Nome riscado), Acaú de Baixo, Condado – PE”

E assim terminamos a nossa defesa dos direitos humanos no rádio A razão foi mais alta e séria, como descobrimos um mês depois: no Violência Zero, na semana anterior à nossa expulsão, fizemos uma reportagem sobre a venda de milagres por evangélicos da Assembleia de Deus. Expulsaram-nos do templo e em menos de 30 dias a igreja dos milagres comprou a emissora. Hoje, a Tamandaré do Recife é 100% Jesus.


* Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa juventude”.