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sexta-feira, 24 de junho de 2016

A derrota comunicacional da esquerda na América do Sul

A argentina Cristina Kirchner e o venezuelano Hugo Chávez foram os presidentes que mais ousaram, ao desafiar os grandes conglomerados midiáticos em seus países. (foto: AFP)

Quando a esquerda começou a tomar um por um os governos dos países sulamericanos, quando foi se instalando, aos poucos, uma onda de governos dispostos a fortalecer o papel do Estado, a trincheira buscada pelas forças neoliberais para se reagrupar e rearmar sua estratégia foi a da imprensa.
Os danos causados pelas políticas neoliberais foram enormes. A fome, o desemprego e a desigualdade social são um flagelo que conhecemos desde sempre, mas a ideologia do Estado mínimo levou a um incremento muito mais acentuado nas últimas décadas do século passado. Por isso, durante quase toda a primeira década do novo século, as urnas deste subcontinente decidiram castigar essas políticas e os políticos que as defendiam.
Uma vez desalojados dos palácios, a alternativa foi montar uma plataforma de pressão política através dos meios de comunicação. No auge da primeira onda neoliberal, a eterna hegemonia da direita no jornalismo latino-americano permitia certo espaço à crítica e ao contraditório. A partir da chegada de Chávez, Lula e Kirchner, esses espaços passaram a ser trincheiras, e o termo não é exagerado.
Alguns veículos adotaram essa postura de forma tão contundente que não poucos os qualificaram como máquinas de propaganda política contra o governo ou a favor da oposição, gerando um confronto com presidentes eleitos que, em ao menos dois casos, chegaram ao extremo. Na Venezuela, em 2002, o grupo de rádio e televisão RCTV foi um dos principais precursores do último golpe de Estado à moda antiga no continente, contra Hugo Chávez. Na Argentina, em 2008, o grupo comunicacional Clarín tomou o lugar de uma direita em frangalhos e liderou a revolta dos produtores rurais contra o governo da recém-assumida Cristina Kirchner.
As respostas de ambos os presidentes foram duras, mas não ilegais. A RCTV continuou operando na Venezuela até o ano de 2007, quando o governo de Chávez decidiu não renovar sua concessão. A decisão foi baseada no fato de o canal ter sido o que mais colaborou com as estratégias comunicacionais para o golpe, como a farsa de Puente Llaguno, na qual se tentou incriminar militantes chavistas pela morte de manifestantes opositores que estavam sendo alvejados por franco-atiradores – a manipulação foi revelada pelo documentário La Revolución No Será Televisada.
Na Argentina, o Grupo Clarín continuou e continua sendo o detentor da hegemonia dos meios de comunicação, mas teve que lidar, durante anos, com a ameaça da Ley de Medios, que previa uma nova regulação que baseada no combate aos monopólios e à propriedade cruzada, além do estímulo à comunicação pública e ao papel dos meios regionais públicos. O Clarín também perdeu os direitos de transmissão dos jogos de futebol, comprados pelo Estado através do programa Fútbol Para Todos, em 2009.
Ainda assim, e bem diferente do que afirmam os críticos fora da Argentina – e especialmente no Brasil – a Ley de Medios não significou a criação de canais de televisão governamentais, mas sim o fortalecimento dos canais públicos, especialmente o canal Encuentro, cujo conteúdo era mais educativo que jornalístico. A lenda do uso do poder governamental para a gestação de uma plataforma jornalística governista financiada com dinheiro do Estado não foi uma realidade – embora houvesse sim meios privados, bem menos poderosos que o Grupo Clarín, que se quadraram com o kirchnerismo.
Quem apostou numa nova plataforma comunicacional, e num relato diferente sobre os acontecimentos da América Latina foi Hugo Chávez, que impulsou a criação do canal de notícias TeleSur, visando criar um confronto evidente com o discurso dos meios de comunicação latinos sediados em Miami e Atlanta, como Fox News e CNN.
O modelo Macri, e Temer
A grande ironia é ver hoje como essas medidas foram tratadas por parte da imprensa – especialmente a que é parceira nos espaços hegemônicos – como ataques à liberdade de expressão, e comparar com o que vemos agora, quando a direita se reinstala no poder e inicia uma verdadeira caça às bruxas comunicacional, sob o silêncio resignado e até mesmo covarde de alguns outrora defensores do pluralismo.
A Argentina é o caso mais evidente. O governo de Mauricio Macri tem sido, no campo das comunicações, um defensor assíduo dos interesses do Grupo Clarín. Macri desmantelou a AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), um dos principais órgãos responsáveis pela regulação pretendida pela Ley de Medios, e iniciou uma política de distribuição de verbas públicas claramente hostil aos meios que contassem com jornalistas críticos à sua gestão – o que levou, por exemplo, à demissão de jornalistas de renome como Víctor Hugo Morales, que viu a Rádio Continental, onde trabalhava há trinta anos, quebrar seu contrato sem aviso prévio e sem manifestar maiores explicações. A crise provocada por essas medidas, e também pelas medidas econômicas do novo governo, levou a uma série de demissões massivas, até mesmo em meios que defenderam sua candidatura no ano passado. Se estima que mais de mil jornalistas argentinos já perderam emprego este ano.
Vale destacar também que a política comunicacional de Macri também contempla o desinvestimento nos meios de comunicação públicos, a eliminação dos canais TeleSur e Russia Today do sistema de televisão público de livre acesso e a criação de tipos legais de perseguição a jornalistas. Por exemplo, pouco depois da descoberta do caso dos Panamá Papers, no qual o seu nome estava envolvido, o governo lançou um projeto que prevê pena de prisão para cidadãos que denunciem casos de possíveis esquemas de lavagem de dinheiro.
Parte dessa receita tem sido seguida pelo governo até agora interino de Michel Temer, especialmente a seletividade com respeito à distribuição da verba pública e à intenção de intervir fortemente nos meios públicos, como se viu no caso da EBC, e não para fortalecê-los, mas justamente o contrário.
Além disso, é interessante observar como nem o cerceamento da pluralidade, nem a demissão massiva de jornalista, nem o estímulo à centralização ou desestímulo aos meios regionais ou comunitários, tanto na Argentina quanto no Brasil, nada disso comove os grandes grupos de comunicação, ou as entidades como a SIP (a inglória Sociedade Interamericana de Imprensa), que outrora gritava e se dizia defensora intransigente da liberdade de imprensa, e que agora, pelo contrário, não poupa elogios ao novo presidente argentino, a quem classificou como uma pessoa “aberta e plural”.
Os que não compraram a briga
Enquanto isso, outros presidentes, e até ex-presidentes, enfrentaram ou enfrentam duras campanhas comunicacionais contra si. O boliviano Evo Morales perdeu um plebiscito em janeiro graças à denúncia de um suposto filho bastardo, que agora a imprensa admite, sem nenhum mea-culpa, que nunca existiu. A chilena Michelle Bachelet enfrenta ataques da mídia local por pedir direito de resposta a uma revista que a acusou de se beneficiar de um esquema imobiliário apenas com um áudio, sem provas documentais – caso que ganha mais contornou por ter surgido uma semana depois dela ter anunciado um investimento recorde para potenciar os meios de comunicação públicos, junto com a criação de um novo canal cultural. Isso sem contar os casos que vemos no Brasil, onde Lula e Dilma nunca deixaram de ser alvo da ira dos grandes canais de televisão e de algumas revistas, o que muitas vezes passou da mera crítica, e beirou a campanha difamatória.
A semelhança entre os casos de Evo, Bachelet, Lula e Dilma é que nenhum deles teve a coragem que Chávez e Cristina tiveram, de encarar a batalha comunicacional. Ainda assim, sofreram consequências similares. Passaram anos fugindo de acusações censura e intervenção, e agora observam como Temer e Macri podem intervir sem maiores adjetivos ou consequências.
Esses ataques às políticas comunicacionais mais plurais nada mais era do que a defesa daquela última trincheira, se usava a novilíngua para fazer do estímulo à diversidade de ideias uma forma de ataque à liberdade de expressão, e assim conseguiram impedir que houvesse qualquer reivindicação em favor dos governos pretenderam estabelecer, com maior equilíbrio social e distribuição de renda, um arremedo de social-democracia ainda distante de um clássico Estado de bem-estar, mas o suficiente para ser completamente inaceitável para uma grande imprensa doutrinadora, ideologizada e partidarizada.
E o pior é que a esquerda logo descobrirá – se é que já não percebeu – que os responsáveis pela nova onda neoliberal são conscientes de que, se pretendem ter longo tempo de vigência, não devem ceder à esquerda sequer aquele pequeno espaço midiático que havia, até os Anos 90, para a crítica e o falso pluralismo.

Chegamos, finalmente, à era do “pode cortar se achar melhor”.