Aconteceu em Genebra,
Suíça, de 2 a 27 de novembro, a Conferência Mundial de Radiocomunicação de 2015
(WRC). Antigamente, quando a luta pela democratização do espectro
eletromagnético dependia, sobretudo de uma reforma das leis de mídia em nível
nacional, pouco importava essas reuniões da WRC, que acontecem desde o ano 1995
a cada dois ou quatro anos. Mas essa tranquilidade analógica acabou. Agora
estamos em meio a uma disputa intensa sobre o futuro uso do espectro, um
conflito que atinge diretamente também a existência da mídia comunitária e
livre. O crescente uso digital das ondas eletromagnéticas colocou na briga pelo
ar novos atores. A instalação de redes para a telefonia móvel nos anos 90 do
século passado ainda não era muito problemática em relação à alocação de
frequências. Fora das bandas usadas pela televisão terrestre e as faixas usadas
para a radiodifusão em AM e FM ainda havia muito espaço disponível e os
usuários eram poucos, principalmente homens brancos de negócios.
Porém o número de
celulares móveis cresceu bastante. Na Europa, por exemplo, inicialmente se usou
somente a faixa de 450 MHz que rapidamente ficou lotada. Mais tarde novas
faixas (900, logo 1800 MHz) e tecnologias de transmissão mais eficientes (AMPS,
GSM) foram introduzidas. Porém, a parte de um uso mais amplo, com o tempo mudou
também o conteúdo.
Hoje, acessar a Internet
com um smartphone é uma normalidade em muitas regiões do mundo. O estudo Cisco
White Paper que não somente relata que o tráfego global móvel cresceu 69% no
ano passado, também estima que três quartos desse tráfego no ano 2019 serão
usados para transmissão de vídeos. E isso significa que as empresas de
telecomunicação precisam cada vez mais de faixas para poder satisfazer esta
pesada demanda.
Se o uso do espectro fosse
decidido unicamente pelo princípio mercadológico (quem dá mais leva), empresas
internacionais de telecomunicação já teriam esvaziado as frequências em questão
da radiodifusão. Hoje em dia, empresas como Oi ou America Móvil faturam muito
mais dinheiro anualmente que os grandes atores do setor da radiodifusão
latino-americana, como Rede Globo ou Televisa. Porém quem define as regras
globais do uso espectral mundial não é Carlos Slim (que alivio…) senão a União
Internacional das Telecomunicações (ITU). E esta organiza a cada dois a quatro
anos a WRC para discutir a modificação ou novos usos das micro-ondas e ondas
radiofônicas…
Um dos debates desse ano,
esperado com muito suspense, teve a ver com o futuro do uso das faixas da banda
UHF 470-695 MHz. Quem está transmitindo nessas faixas atualmente? Em muitos
países do mundo pelo menos partes dessas frequências se usam para a transmissão
de TV digital terrestre, como também no Brasil e outros 12 países da América
Latina que adotaram o padrão SBTVD. Esse fato teve pouca importância para o
lobby das empresas de telecomunicação que estão em busca de expandir o uso do
espectro para o tráfego móvel. Nem se preocuparam com uma proposta para
compartilhar estas faixas, ou como diz um dos relatórios (Aetha Report)
financiado pela BBC: “Ninguém está com o apetite de fatiar o salame”. Querem a
salsicha completa e por isso propõem reorganizar a televisão digital aberta
distanciando da banda UHF, usando transmissões por satélite, cabo e TV por
Internet (IPTV). Dessa forma nem entrou em debate o possível uso compartilhado
das faixas pela radiodifusão e serviços móveis – que segundo diferentes
pesquisas causarão constantes interferências e serão igualmente problemáticos.
Mas então, quem ficou com
o salame? A decisão final do WRC não seguiu os resultados de consultorias
públicas nas quais, por exemplo, na Europa 63% das organizações e cidadãos
participantes (a comunidade móvel organizada.) eram a favor de retirar por
completo a radiodifusão das faixas de 470-695 MHz. Ao contrário, ficaram
felizes até mesmo os vegetarianos nos conselhos de empresas públicas, estatais
e privadas da radiodifusão presentes. Porque foi decidido, baseando-se
parcialmente no Relatório Lamy (ver referência abaixo), que até o ano 2023 não
tenderá mudanças na regulamentação das bandas UHF o que protege o futuro
contínuo do desenvolvimento da TV digital. A única gota de amargura foi à
justificativa da decisão: Os custos de mover a radiodifusão pra “fora” teriam
sido 4 vezes maior que os beneficiários de um uso móvel das bandas em disputa.
Ou seja, pode-se dizer que
paradoxalmente um argumento meramente economicista serviu para defender a
recepção de conteúdo abertamente via uma antena, um descodificador e uma TV em
cada casa. Significa também, que além do recente sucesso de Netflix e Co,
haverá pelo menos oito anos mais uma grande plataforma que nos convida para
apropriar e reinventar a televisão digital.
No Brasil, já está se realizando
de maneira tímida, mas interessante, a implementação de um Canal Cidadania. Mas
não precisa ser a única conquista de uma prática participativa da televisão
digital. O seu uso interativo ainda não está muito explorado, assim como a
chegada de programas públicos a todos os lares do país. Muito se pode fazer
ainda nos próximos anos brincando com a faixa 470 MHz. Também será o tempo para
juntar argumentos e práticas em defesa do seu uso não comercial.
Amarc
Brasil