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domingo, 27 de dezembro de 2015

Um respiro na luta pelo uso democrático do espectro


Aconteceu em Genebra, Suíça, de 2 a 27 de novembro, a Conferência Mundial de Radiocomunicação de 2015 (WRC). Antigamente, quando a luta pela democratização do espectro eletromagnético dependia, sobretudo de uma reforma das leis de mídia em nível nacional, pouco importava essas reuniões da WRC, que acontecem desde o ano 1995 a cada dois ou quatro anos. Mas essa tranquilidade analógica acabou. Agora estamos em meio a uma disputa intensa sobre o futuro uso do espectro, um conflito que atinge diretamente também a existência da mídia comunitária e livre. O crescente uso digital das ondas eletromagnéticas colocou na briga pelo ar novos atores. A instalação de redes para a telefonia móvel nos anos 90 do século passado ainda não era muito problemática em relação à alocação de frequências. Fora das bandas usadas pela televisão terrestre e as faixas usadas para a radiodifusão em AM e FM ainda havia muito espaço disponível e os usuários eram poucos, principalmente homens brancos de negócios.

Porém o número de celulares móveis cresceu bastante. Na Europa, por exemplo, inicialmente se usou somente a faixa de 450 MHz que rapidamente ficou lotada. Mais tarde novas faixas (900, logo 1800 MHz) e tecnologias de transmissão mais eficientes (AMPS, GSM) foram introduzidas. Porém, a parte de um uso mais amplo, com o tempo mudou também o conteúdo.

Hoje, acessar a Internet com um smartphone é uma normalidade em muitas regiões do mundo. O estudo Cisco White Paper que não somente relata que o tráfego global móvel cresceu 69% no ano passado, também estima que três quartos desse tráfego no ano 2019 serão usados para transmissão de vídeos. E isso significa que as empresas de telecomunicação precisam cada vez mais de faixas para poder satisfazer esta pesada demanda.

Se o uso do espectro fosse decidido unicamente pelo princípio mercadológico (quem dá mais leva), empresas internacionais de telecomunicação já teriam esvaziado as frequências em questão da radiodifusão. Hoje em dia, empresas como Oi ou America Móvil faturam muito mais dinheiro anualmente que os grandes atores do setor da radiodifusão latino-americana, como Rede Globo ou Televisa. Porém quem define as regras globais do uso espectral mundial não é Carlos Slim (que alivio…) senão a União Internacional das Telecomunicações (ITU). E esta organiza a cada dois a quatro anos a WRC para discutir a modificação ou novos usos das micro-ondas e ondas radiofônicas…

Um dos debates desse ano, esperado com muito suspense, teve a ver com o futuro do uso das faixas da banda UHF 470-695 MHz. Quem está transmitindo nessas faixas atualmente? Em muitos países do mundo pelo menos partes dessas frequências se usam para a transmissão de TV digital terrestre, como também no Brasil e outros 12 países da América Latina que adotaram o padrão SBTVD. Esse fato teve pouca importância para o lobby das empresas de telecomunicação que estão em busca de expandir o uso do espectro para o tráfego móvel. Nem se preocuparam com uma proposta para compartilhar estas faixas, ou como diz um dos relatórios (Aetha Report) financiado pela BBC: “Ninguém está com o apetite de fatiar o salame”. Querem a salsicha completa e por isso propõem reorganizar a televisão digital aberta distanciando da banda UHF, usando transmissões por satélite, cabo e TV por Internet (IPTV). Dessa forma nem entrou em debate o possível uso compartilhado das faixas pela radiodifusão e serviços móveis – que segundo diferentes pesquisas causarão constantes interferências e serão igualmente problemáticos.

Mas então, quem ficou com o salame? A decisão final do WRC não seguiu os resultados de consultorias públicas nas quais, por exemplo, na Europa 63% das organizações e cidadãos participantes (a comunidade móvel organizada.) eram a favor de retirar por completo a radiodifusão das faixas de 470-695 MHz. Ao contrário, ficaram felizes até mesmo os vegetarianos nos conselhos de empresas públicas, estatais e privadas da radiodifusão presentes. Porque foi decidido, baseando-se parcialmente no Relatório Lamy (ver referência abaixo), que até o ano 2023 não tenderá mudanças na regulamentação das bandas UHF o que protege o futuro contínuo do desenvolvimento da TV digital. A única gota de amargura foi à justificativa da decisão: Os custos de mover a radiodifusão pra “fora” teriam sido 4 vezes maior que os beneficiários de um uso móvel das bandas em disputa.

Ou seja, pode-se dizer que paradoxalmente um argumento meramente economicista serviu para defender a recepção de conteúdo abertamente via uma antena, um descodificador e uma TV em cada casa. Significa também, que além do recente sucesso de Netflix e Co, haverá pelo menos oito anos mais uma grande plataforma que nos convida para apropriar e reinventar a televisão digital.

No Brasil, já está se realizando de maneira tímida, mas interessante, a implementação de um Canal Cidadania. Mas não precisa ser a única conquista de uma prática participativa da televisão digital. O seu uso interativo ainda não está muito explorado, assim como a chegada de programas públicos a todos os lares do país. Muito se pode fazer ainda nos próximos anos brincando com a faixa 470 MHz. Também será o tempo para juntar argumentos e práticas em defesa do seu uso não comercial.
Amarc Brasil