quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Verdades e mitos sobre interferência de rádios comunitárias em aeroportos


Por Candice Cresqui

As rádios comunitárias têm encontrado uma série de obstáculos para seu funcionamento. Além do volume de exigências para a legalização, a morosidade do governo federal na concessão de outorgas e a falta de recursos, as rádios de baixa freqüência enfrentam uma campanha sistemática de desmoralização e descrédito, encabeçada pelas grandes empresas de radiocomunicação. Entre os argumentos apontados pelas rádios comerciais - principalmente agora, aproveitando-se do momento de crise no setor aeronáutico do país - está o de que as rádios comunitárias interferem fortemente nos sistemas de comunicação e rádio-navegação aérea, podendo até mesmo provocar queda de aeronaves.
Sancionada pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em 1998, a Lei 9.612 estabelece os critérios para concessão de canal às rádios comunitárias. Para receber a outorga, essas emissoras só podem operar em um raio de até um quilômetro, a uma altura máxima de 30 metros, longe dos aeroportos e com equipamento de transmissão fiscalizado e homologado. Além disso, quando recebem a autorização para começar a operar, as emissoras passam a ter um espaço no plano de canais calculado pela Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, de forma que não interfiram em outra freqüência FM. “Física e tecnicamente, essas rádios de pequeno alcance não teriam como interferir na comunicação entre aeronaves e aeroportos”, avalia o jornalista Dioclécio Luz, autor do livro A arte de pensar e fazer rádios comunitárias.
Os sinais de VHF são divididos de dois a seis para canais baixos de televisão e de sete a 13 para canais altos de televisão. As transmissões de rádio em freqüência VHF-FM operam entre os canais seis e sete. Localizam-se nesta faixa todos os canais de rádio FM, entre eles os de comunicação aeronáutica, policial e hospitalar. As rádios FM, comerciais e comunitárias outorgadas, operam de 88 a 108 MHz (Mega Hertz). Já a faixa de comunicação aeronáutica vai de 108 a aproximadamente 137 MHz.
Como cada um desses sistemas opera em faixas diferentes, a princípio, não há possibilidade de captar em um rádio comum as conversas da central de polícia com o carro patrulha ou a comunicação entre a torre de um aeroporto e alguma aeronave. Esses danos só ocorrerão se houver problemas na transmissão, se o equipamento não for regulado corretamente, ou não tiver os filtros adequados para impedir os sinais harmônicos (duplicados) ou espúrios (aquele que opera fora da faixa permitida).
As rádios de baixa potência não legalizadas que usam sinal livre dentro da faixa FM até podem ser responsáveis por interferências junto ao controle do espaço aéreo. Entretanto, se o equipamento é comprado legalmente e possui a homologação do órgão responsável, a possibilidade de interferência é mínima, mesmo que a rádio de baixa potência não seja legalizada. Assim garante o engenheiro eletrônico e pesquisador Higino Germani, ex-diretor técnico da TVE-RS. Para Germani, que tem larga experiência em sistemas de radiodifusão (foi chefe da área técnica de Radiodifusão no antigo Departamento Nacional de Telecomunicações e diretor técnico da Rádio Nacional de Brasília, atual Radiobrás), “embora possam ocorrer interferências, é um exagero dizer que uma rádio possa derrubar uma aeronave”.
O diretor da Faculdade de Ciências Aeronáuticas da PUCRS, Elones Fernando Ribeiro, salienta que a incidência de acidentes graves provocados pela interferência de sinais estranhos à radiocomunicação aeronáutica é nula, tanto que os livros técnicos utilizados pelos alunos não fazem referência a nenhum caso. “Nunca ouvi falar em queda de aviões”, conta o profissional, que tem em seu currículo mais de 27 anos como controlador de vôo e oito anos como piloto.
Um estudo realizado pelo pesquisador Marcus Manhães, do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), explica que a interferência de uma rádio na comunicação aeronáutica se dá por uma composição de vários sinais e não apenas um. Sinais de emissoras de rádio FM distintas, ao serem captados com níveis suficientemente fortes, podem provocar um efeito denominado intermodulação. Este fenômeno resulta em uma mudança de freqüências dos sinais recebidos, tornando-os idênticos ou relativamente próximos da faixa de freqüência utilizada na recepção dos serviços aeronáuticos. “Uma vez que as rádios comunitárias trabalham em baixa potência, elas só poderiam interferir com a ajuda de um sinal mais potente, ou seja, o de uma rádio comercial. Quanto mais alto for o sinal, mais crítica pode ser a interferência. É uma equação simples”, frisa o técnico. Cabe ressaltar, segundo Manhães, que cada aeroporto possui um único canal de rádio-comunicação dentro da faixa permitida.
Outro fator importante para a ocorrência de interferências, conforme o pesquisador, é a instalação de estações de rádio próximas aos pontos de testes dos aeroportos. No caminho para os aeroportos, são demarcados pontos que indicam a localização das pistas de pousos. Em alguns desses pontos são instalados equipamentos responsáveis pela medição de ocorrência, em terra, de interferência de sinais radiofônicos na comunicação aeronáutica. Se, na superfície houver ingerências de sinais estranhos à comunicação, o mesmo ocorrerá no ar. “No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o ponto de teste está localizado na Avenida Paulista, local onde um expressivo número de estações comerciais está instalado. Nesta região, as interferências ocorrem com mais freqüência”, explica o pesquisador.
São três os aparelhos utilizados pelas aeronaves para auxiliar a navegação e a comunicação aeronáutica: o ILS (Instrument Landing System Localizer) tem a finalidade de guiar aeronaves em procedimento de aproximação e aterrissagem; o VOR - VHF (Omnidirectional Radio Range) auxilia a navegação aérea fornecendo informações sobre a radial da aeronave em relação a um ponto terrestre de localização conhecida, também denominado radiofarol; e o COM - VHF (Communications Equipament) proporciona comunicação bidirecional de voz entre a tripulação da aeronave e o controlador de vôo.
Segundo a pesquisa de Manhães, podem ocorrer neles interferências de dois tipos: aquelas provocadas pelo aparecimento de produtos de intermodulações ocasionadas pela não linearidade dos receptores; e aquelas decorrentes da incapacidade de rejeitar sinais de intensidade elevada. No segundo tipo de interferência, o serviço irá considerar potencialmente interferentes os sinais que forem de intensidade superior a -5dBm.
O dBm (decibel miliwatt) é a medida mais comum para expressar a potência de um equipamento de transmissão (rádio). Zero dBm é o mesmo que 1mW de potência. A maioria dos rádios oferecem entre 15 a 18 dBm de potência de saída, sendo entre 30 a 50 mW.
Já nos serviços ILS e VOR, os níveis de interferência variam com o valor da freqüência da estação FM. “Admitem-se níveis maiores para os canais mais baixos da faixa de FM. Tal variação significa que os receptores aeronáuticos estão mais sujeitos às interferências provenientes dos canais mais altos da faixa de FM e, conseqüentemente, são menos suscetíveis aos canais mais baixos”, explica o pesquisador.
Em 2005, os deputados federais Walter Pinheiro, Henrique Fontana, Valdecir de Oliveira e Adão Pretto questionaram o Ministério da Defesa (MD) quanto aos acidentes que teriam ocorrido em resultado de interferências em aeroportos. Das cinco ocorrências registradas, três eram de emissoras comerciais de radiodifusão. “A resposta do ministério revela que há comerciais, as broadcasting, como eles dizem, interferindo em dois aeroportos de grande trânsito do país, Guarulhos e Santos Dumont. Estas emissoras são associadas da ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão”, afirma o jornalista Dioclécio Luz.
Para impedir a ocorrência de interposições de freqüências, a Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL teria que interferir nas rádios comerciais. “Mas isso é coisa que eles jamais farão. É mais fácil culpar as emissoras comunitárias pelas interrupções provocadas na comunicação aeronáutica do que responsabilizar as empresas de radiodifusão comercial”, alerta o pesquisador do CPqD.
No Brasil, segundo estimativas de entidades ligadas à radiodifusão comunitária, existem hoje aproximadamente 20 mil rádios de baixa potência, das quais 2.745 possuem outorga. Porém, nenhum levantamento foi realizado para obter a precisão desse número, uma vez que não há como controlar a abertura e o fechamento de emissoras não-legalizadas. “As rádios de baixa potência, outorgadas ou não, na sua maioria, utilizam equipamentos legais. Como não possuem muitos recursos, já compram equipamentos homologados para que, quando a ANATEL analisar a documentação jurídica e a estrutura técnica, os gastos não venham a aumentar”, argumenta o Coordenador Jurídico da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária - ABRAÇO, Joaquim Carvalho.

Embora contestado por especialistas, o argumento de que as transmissões das rádios de baixa freqüência podem causar a queda de aeronaves é usado frequentemente como justificativa para o fechamento das emissoras. Para Manhães, isso de deve ao caráter técnico da questão, incompreensível para a maioria das pessoas, que, “aliado à comoção que provoca ao atribuir grave risco a vidas humanas, estabelece a aceitação desta cilada”. Usar tal argumento constitui, para ele, mais uma tentativa de desmoralizar estes importantes mecanismos para a democratização da comunicação, que são as emissoras de radiodifusão comunitária.