Estado brasileiro processa militante e
criminaliza rádios comunitárias
Jerry
de Oliveira (foto), do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, é acusado de
resistência, ameaça, calúnia e injúria contra agentes da Anatel. Processo é
tentativa de calar a voz do movimento social
Por Bruno Marinoni*
- Gostaria de expressar minha alegria por estar aqui discutindo um
tema tão relevante como o das rádios comunitárias. Eu mesmo já tive uma – disse
o deputado.
- O senhor teve uma? – perguntou Jerry de Oliveira.
- Sim.
- Então, não era comunitária!
(riso
geral)
Este diálogo foi presenciado por mim e tantos outros durante uma audiência
pública para discutir a digitalização do rádio, realizada na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro. Expressa um pouco da coragem, responsabilidade,
clareza e irreverência de Jerry de Oliveira, militante paulista do Movimento
Nacional de Rádios Comunitárias (MNRC), que hoje, assim como diversos lutadores
sociais que se organizam para resistir ou enfrentar a reprodução das
desigualdades, é alvo de um processo criminal.
Jerry é
acusado de resistência, ameaça, calúnia e injúria contra agentes da Anatel
(Agência Nacional de Telecomunicações) ao interceder a favor das rádios
comunitárias em uma ação de fiscalização da agência. Após receber aviso de que
haveria um processo de “fechamento” de uma emissora, Jerry flagrou agentes da
Anatel e policiais militares na casa de uma das coordenadoras da emissora sem
mandado judicial ou autorização dos residentes para entrar. A moradora estava
de camisola, havia sido acordada e surpreendida pela Anatel. Diretor da sessão
paulista da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), Jerry teria
bloqueado a saída dos agentes da fiscalização e da polícia, informando que não
poderiam levar o equipamento da rádio sem os documentos legais necessários e
sem o devido lacre que os protegeria de adulteração e danos.
No mesmo
dia, os agentes da Anatel cumpriram mandado de busca e apreensão em outra rádio
comunitária. Ali, o procedimento se deu dentro da "regularidade" e
eles foram recebidos por um dos diretores da emissora, acompanhado do advogado.
A equipe da rádio acredita, no entanto, que a tensão inerente a esses processos
induziu a um aborto da esposa do dirigente da emissora, grávida à época. Jerry
procurou então o responsável pelas operações da Anatel na região e a recepção,
feita por outros funcionários da agência, foi em clima de troca de provocações.
Em decorrência desses dois episódios, Jerry foi acusado pelo Ministério
Público. O promotor que trabalha no caso, Fernando Filgueiras, pede a
condenação e pena máxima para o militante, o que poderia resultar em 5 anos e 2
meses de regime fechado.
A Artigo
19, organização internacional de defesa da liberdade de expressão, se
manifestou no processo, afirmando que as acusações “tratam-se de medidas
desproporcionais e antidemocráticas, que dão ensejo à autocensura”.
A atuação
do Estado brasileiro contra as emissoras comunitárias vem sendo denunciada há
um longo tempo pelo movimento que luta pela democratização da mídia no país.
Aqui, a prática da radiodifusão comunitária sem autorização do Ministério das
Comunicações é considerada crime, passível de privação de liberdade. A
Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, afirma
no entanto que a responsabilização por esta prática deveria ser feita, no
máximo, no âmbito civil ou administrativo.
Em março
deste ano, a Artigo 19 e a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc)
denunciaram o problema à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos (OEA), considerando-o uma violação da liberdade de expressão
e do direito humano à comunicação no Brasil. Casos de invasão de emissoras (ou
mesmo casas) e de apreensão de equipamentos por agentes da Anatel, acompanhados
de policiais, sem ordem judicial, são denunciados de forma constante. Cerca de
11 mil rádios comunitárias foram fechadas nos últimos oito anos no Brasil.
A
realidade é que a política definida pelos governos e legisladores brasileiros
para a radiodifusão comunitária tem sido marcada pela repressão. Em vez de
fomentar o desenvolvimento do setor, garantindo a liberdade de expressão e a
efetivação do direito à comunicação dessas comunidades, o Estado brasileiro
opta por sufocar essas vozes. A própria legislação e os entraves burocráticos
empurram para a ilegalidade os comunicadores populares, depois rotulados de
"foras-da-lei" pelas rádios comerciais, que combatem ferozmente a
“concorrência” daqueles que querem fazer da comunicação mais do que um mercado
a ser explorado.
O
processo contra Jerry de Oliveira não resultará no fim da luta e mobilização
das rádios comunitárias no Brasil, unidas para defender seu companheiro. Mas
sem dúvida é uma tentativa de calar um dos setores mais combativos das
organizações populares de nosso país. Sua possível condenação não será apenas
mais uma prova de que as comunicações no Brasil continuam sob controle do poder
político e econômico das grandes emissoras. Mas também a comprovação que o
Estado brasileiro, através dos seus mais diferentes braços, viola o direito à
liberdade de expressão de seus cidadãos e cidadãs.
*Bruno Marinoni é
repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em
sociologia pela UFPE.